A tendência do Irã para o comportamento dos EUA e Israel

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Para além da prova de força na qual se envolvem Washington e Teerã, Thierry Meyssan põe em evidencia a mudança profunda de comportamento do Irão. Este país, outrora exigente quanto ao respeito pelo Direito Internacional, ignora-o hoje em dia, juntando-se assim aos Estados Unidos e a Israel que jamais o respeitaram.

| Damasco (Síria)

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O Irã captava a atenção do mundo inteiro nas suas intervenções perante as Nações Unidas. Ele levantava bem alto o estandarte dos povos face ao imperialismo. Já nada resta hoje em dia desta herança.

Os 195 Estados membros da ONU pretendem querer resolver os seus conflitos sem recorrer à guerra, mas, antes pelo Direito. Esse assenta, desde a sua criação pela Conferência da Haia de 1899 numa ideia simples: da mesma forma que os particulares —aqui incluídos os dirigentes políticos— aceitam preservar-se da guerra civil para tal submetendo-se ao Direito Nacional, também os Estados podem preservar-se da guerra submetendo-se voluntariamente para tal ao Direito Internacional.

Por «Direito Internacional» entendo os procedimentos que regem as relações entre os Estados, e não aquelas que, de Nuremberg ao TPI, legalizam o julgamento dos vencidos pelos seus vencedores.

Agora, três membros da ONU mostram o seu desprezo pelo Direito Internacional, enquanto outros já nem se lhe referem e, após terem desvirtuado o conceito de «Direitos do Homem» [1], preferem um «multilateralismo fundado em regras» [2].

Três Estados fora da Lei

O primeiro são os Estados Unidos, que desde a sua criação, há dois séculos, se afirmam uma nação «sem paralelo». Segundo o seu mito nacional, foram um refúgio para a seita puritana dos «Pais Peregrinos» vindos no Mayflower e continuam a ser hoje em dia para todos os perseguidos, sejam religiosos ou políticos. Em nome do que sempre se recusaram a aplicar os tratados internacionais no Direito interno; julgam os comportamentos dos outros severamente, mas absolvem a priori os seus cidadãos que agem da mesma forma; e recusam que qualquer jurisdição internacional se imiscua nos seus assuntos internos [3]. Foi a razão profunda pela qual pressionaram os outros países a aderir à Sociedade das Nações, mas se recusaram a entrar nela. Se, entretanto, aceitaram os princípios do Direito Internacional durante a Guerra Fria, desde a criação das Nações Unidas até ao desaparecimento da URSS, regressaram logo que puderam ao seu comportamento anterior. Assim, em 1999, atacaram de forma totalmente ilegal a República Federal da Jugoslávia, levando consigo os seus vassalos da Aliança Atlântica. Depois, lançaram, sob falsos pretextos, as guerras no Afeganistão, no Iraque e na Líbia. Os seus ataques contra os Iranianos, em dois países do Médio-Oriente, o Iraque e o Iémen, a 3 de Janeiro de 2020, são, também esses, totalmente ilegais.

O segundo foi Israel desde a sua proclamação unilateral, em 14 de Maio de 1948, violando o processo de partilha da Palestina geográfica imaginada pelas Nações Unidas. Desde há setenta anos, Telaviv vê o Conselho de Segurança votar Resoluções que despreza. Cada vez que são consideradas sanções contra si, pode contar com a proteção dos Estados Unidos e não é obrigado a respeitá-las. Considera-se como estando eternamente ameaçado e só podendo sobreviver pela guerra; uma posição cultural que talvez venha a ter fim quando os seus cidadãos que se definem como Judeus (Likud) sejam menos numerosos do que os que se definem como Israelitas (Branco-Azul).

Existe agora um terceiro: o Irã. Desde sempre, Teerã executou os seus chefes oposicionistas no estrangeiro, em todo o mundo, mas jamais cidadãos estrangeiros. Por exemplo, o Xá Mohammad Reza Pahlavi mandou assassinar o filósofo Ali Shariati em Londres e, depois, após 1978, o governo islâmico mandou assassinar contra-revolucionários na Europa. Nunca tendo sido esses assassinatos oficialmente reivindicados. Durante a guerra imposta pelo Iraque, o Irão mandou atacar interesses dos seus inimigos no estrangeiro; por exemplo, o atentado contra as forças norte-americanas e francesas da ONU em Beirute, em 1983. Mas esse foi realizado por agentes libaneses (os quais mais tarde participaram na fundação do Hezbollah) e dirigido contra as atividades ilegais de soldados dessa força (a reunião secreta regional da CIA). Ora, desde há dois anos, forças iranianas dispararam várias vezes, sem o reivindicar, mísseis contra Israel a partir do território sírio em violação do cessar-fogo sírio-israelita de 1973. E, este mês, mísseis foram oficialmente atirados a partir do Irão sobre forças norte-americanas no Iraque, violando a soberania de Bagdade [4].

Os Estados Unidos veem-se como uma nação de perseguidos e não conseguiriam, pois, receber conselhos dos outros, os “perseguidores”. Israel imagina-se como o refúgio de um povo ameaçado e não conseguiria portanto aceitar conselhos daqueles que o ignoraram ou pior violentaram. Mas o Irão?

A evolução do Irã

Como explicar esta evolução senão por uma profunda mudança do Poder? Tudo começou a desregular-se no fim de 2013 e assistimos, desde 2017, a manifestações, não apenas em Teerão e Isfahan, mas em todo o país. Pouco a pouco as instituições foram alteradas. O sistema Judicial independente do Executivo e do Legislativo tornou-se um órgão de repressão política [5], indo ao ponto de condenar à porta fechada a 15 anos de prisão, por motivos secretos, o antigo Vice-presidente nacionalista Hamid Baghaie [6]. O Conselho de Guardiões, que —durante a Revolução— devia velar por afastar das eleições agentes estrangeiros, tornou-se um órgão de censura da Oposição, indo ao ponto de qualificar a equipa do antigo Presidente Mahmud Ahmadinejad de «maus muçulmanos» (sic). Quando no islão, a função clerical é de afirmar a lei, assistimos, pois, a uma retoma em mãos do Poder por um clero que viola todos os princípios legais.

Há 6 anos que não paramos de o afirmar : isto nada tem a ver com a oposição entre pró e anti-ocidentais, nem com a questão das crenças. É o retorno do problema secular dos iranianos: a veneração cega pela função clerical, qualquer que seja a fé dominante. Não haverá solução sem separação constitucional de poderes civis e religiosos. Em todas as épocas, sob todo o tipo de religiões dominantes, sob todo o tipo de regimes, isto se colocou.

Repito, isto nada tem a ver com a Revolução de 1978, a qual, contrariamente a uma ideia feita no Ocidente, não foi feita pelo clero, mas também contra ele. O Aiatola Khomeini fora rejeitado pelos seus pares, os quais só se lhe juntaram após a sua vitória. Comportaram-se então com fervor revolucionário para fazer esquecer as suas falhas anteriores. Se nos referirmos aos documentos oficiais norte-americanos já desclassificados [7], o Conselheiro de Segurança Nacional da altura, Zbigniew Brzeziński, considerava o clero como aliado dos EUA face a um Xá que se tornara muito ganancioso. Ele montou o retorno do Imã Khomeini ao Irão pensando erradamente que ele era como os outros religiosos. Ficou ciente do engano desde o discurso anti-imperialista deste no cemitério de Behesht-e Zahra.

Inúmeros atores do Próximo-Oriente compreenderam esta evolução a começar pelo Hezbollah e a Síria. Os dois distanciaram-se da política interna iraniana. Em plena guerra, Damasco não teve embaixador do Irão durante mais de um ano. Os Ocidentais, esses, não perceberam esta mudança porque estão prisioneiros da sua própria propaganda contra a Revolução de 1978. Eles interpretam os movimentos atuais no Irão em função das suas inúmeras tentativas de derrube do regime e não pela observação dos comportamentos dos Iranianos.

As explicações dos EUA e do Irã perante o Conselho de Segurança

Tal como em todas as intervenções militares no exterior, após as suas trocas de bombas, os EUA e o Irão garantiram ao Conselho de Segurança que agiam no respeito pela Carta das Nações Unidas.

A carta da embaixatriz Kelly Craft anunciando o assassinato do General Qassem Soleimani, a 2 de Janeiro de 2020, é surrealista [8].
Ela não faz referência à tentativa de assassínio simultâneo do seu adjunto, o altamente secreto Abdul Reza Shahlai, no Iémen [9].Ela desfia uma série de acusações contra os aliados do Irão, mas nenhuma contra o alvo em si mesmo. As acusações do Presidente Trump de um ataque iminente a quatro embaixadas dos EUA por Soleimani já não são aí evocadas. Elas foram, aliás, desmentidas pelo Secretário da Defesa, Mark Esper. [10].
A única acusação contra o próprio Irão é a réplica de 7 de janeiro.

Igualmente absurda é a carta do embaixador Majid Takht Ravanchi [11].

Ela estabelece a legalidade de uma resposta iraniana, mas não desta resposta. Nada autoriza o Irã a atacar o território iraquiano sem a autorização do Governo de Bagdad.

Além disso, o Iraque protestou de imediato contra as ações dos Estados Unidos e do Irã [12].

O objeto do Direito Internacional

Muitos pensam que não há aqui razão para respeitar a Lei se os outros se riem dela. É que eles percebem isto como uma restrição e não como uma proteção.

No seu Leviatã, o filósofo Thomas Hobbes, que havia experimentado a guerra civil inglesa (1642-1651), mostrava que os indivíduos tudo devem fazer para se proteger do caos. Aqueles que enfrentaram os exércitos jihadistas sabem até que ponto ele estava certo, os outros, adormecidos pelo seu estado de conforto, ignoram-no. Hobbes ia mesmo até ao ponto de pensar que mais valia um Estado autoritário que os horrores do caos. Ele aceitava as derivas do Estado que comparava ao Leviatã, a besta monstruosa que guarda os “infernos”.

Além disso, o Direito Internacional nada tem de monstruoso. Ele não fere nenhuma consciência. Afastar-se dele ameaça a paz e, portanto, as nossas vidas.

Tradução Alva


[1] “Teoria e prática dos Direitos do Homem”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 2 de Outubro de 2019.

[2] “Multilateralismo ou Direito Internacional ?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 3 de Dezembro de 2019.

[3] É mandatório ler as actas do colóquio organizado pelo Carr Center for Human Rights Policy : American Exceptionalism and Human Rights, Michael Ignatieff, Princeton University Press (2005).

[4] «Estados Unidos / Irán: a propósito de sus recientes cartas remitidas al Consejo de Seguridad de Naciones Unidas relativas a sus acciones militares», Nicolas Boeglin, Derecho Internacional Público. Costa Rica, 13 de enero de 2020.

[5] «La Justicia iraní desafía a los partidos políticos… exceptuando a uno», Red Voltaire , 16 de agosto de 2017.

[6] “Processo Secreto: 15 anos de prisão para o Vice-presidente de Ahmadinejad”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 30 de Março de 2018.

[7] Foreign Relations of the United States. Iran: Revolution, January 1977–November 1979 (Under Declassification Review); Iran: Hostage Crisis, November 1979–September 1980 (In Production); Iran: Hostage Crisis, September 1980–January 1981 (Under Declassification Review), US Secretary of State.

[8] «Notificación de Estados Unidos sobre la eliminación de Qassem Soleimani», por Kelly Craft, Red Voltaire , 8 de enero de 2020.

[9] “On the day U.S. forces killed Soleimani, they targeted a senior Iranian official in Yemen”, John Hudson, Missy Ryan and Josh Dawsey, The Washington Post, January 10, 2020.

[10] “Esper says he “didn’t see” specific evidence showing Iranian threat to 4 U.S. embassies”, Melissa Quinn, Face The Nation, CBS, January 12, 2020.

[11] «Notificación iraní del bombardeo ‎contra bases estadounidenses», por Majid Takht Ravanchi, Red Voltaire , 8 de enero de 2020.

[12] « Violations iraniennes de la souveraineté iraquienne », par Mohammed Hussein Bahr Aluloom‎‎, Réseau Voltaire, 9 janvier 2020.

Thierry Meyssan

Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).


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