A Rússia adapta-se às “sanções do inferno”

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Entenda por que a Rússia atacou a Ucrânia - CUT - Central Única dos  Trabalhadores
Por M. K. Bhadrakumar
 resistir.info – 11.03.22
As observações do Presidente russo Vladimir Putin na sua reunião com ministros do governo na quinta-feira foram os seus primeiros comentários sobre as “sanções do inferno” do Ocidente. Elas focaram-se quase inteiramente “num conjunto de medidas para minimizar as consequências das sanções sobre a economia russa e o povo do nosso país”.
A prioridade número um de Putin é manter-se responsável perante o seu povo. Ao contrário do seu homólogo norte-americano, Joe Biden, Putin não sente necessidade de se destacar, dada a sua elevada taxa de aprovação superior a 70%.
O paradoxo é que, enquanto os países ocidentais que impuseram as sanções estão a passar por paroxismos de angústia, preocupações e síndromes de ansiedade, a “vítima”, a Rússia, parece indiferente e está a adaptar-se calmamente ao “novo normal”. O contraste não poderia ser mais acentuado.
Sem dúvida, o Kremlin preparou-se minuciosamente para as sanções ocidentais. O Primeiro-Ministro Mikhail Mishustin disse a Putin que uma “sede especial” entrou em ação para coordenar as atividades de todos os departamentos, inclusive a nível regional. Ele disse: “Estão a ser dados passos para proteger as áreas mais vulneráveis, sector por sector”. Os “objetivos centrais” são:
• “proteger o mercado interno”;
• assegurar o funcionamento ininterrupto das empresas, eliminando as perturbações na logística e nas cadeias de produção;
• ajudar as pessoas e as empresas a adaptarem-se rapidamente às circunstâncias em mudança; e,
• manter o emprego.
Mais de 20 grandes diplomas legislativos estão em preparação, que incluem propostas específicas para a estabilização dos mercados financeiros, indústrias de apoio, especialmente para o sector privado, bem como para o “retorno de capital”.
Um projeto de lei visa impedir o encerramento de fábricas por proprietários estrangeiros através de “gestão externa”. Há um vago indício de nacionalização, se a pressão se fizer sentir. Curiosamente, a maioria dos proprietários ocidentais anuncia “suspensão temporária das operações” enquanto paga salários aos empregados.
O setor das TI, a indústria da construção, as empresas de transportes e o sector das viagens e turismo receberão uma atenção especial – assim como a agricultura, a qual não é só acerca de empregos, mas também de segurança alimentar. Há uma flexibilização geral das medidas regulamentares, dos prazos de pagamento da dívida, dos procedimentos burocráticos, etc.
Mishustin observou: “A máxima liberdade de atividade económica no país, a regulamentação e controlo mínimos e, naturalmente, o apoio ao mercado de trabalho continuarão a ser a base para a nossa resposta económica. O Governo irá expandir a substituição de importações e ajudar os produtores nacionais a substituir os produtos estrangeiros nas cadeias de abastecimento”.
O ponto alto do evento de ontem foi a apresentação pelo ministro das Finanças Anton Siluanov sobre medidas para estabilizar o mercado financeiro interno, sublinhando a precisão com que o Kremlin antecipou a agenda do Ocidente para isolar a Rússia.
Siluanov afirmou que “os países ocidentais lançaram basicamente uma guerra financeira e económica”, combinando um incumprimento das suas responsabilidades financeiras para com a Rússia com um congelamento das reservas de ouro e de moeda da Rússia. “Estão a fazer tudo o que podem para impedir o comércio externo e a exportação”, acrescentou, “tentando criar uma escassez de bens essenciais importados no dia-a-dia… (e) obrigar as empresas bem sucedidas com capital estrangeiro a fecharem”.
Nestas circunstâncias, a “prioridade do governo é estabilizar a situação no sistema financeiro e assegurar operações ininterruptas”. Siluanov explicou que as medidas tomadas neste sentido incluem “precauções para controlar a saída de capital para o estrangeiro” e um procedimento especial para o serviço da dívida externa, incluindo a dívida nacional, através do qual a Rússia pagará o seu passivo externo em rublos e “efetuará a conversão, descongelando as nossas reservas de ouro e de moeda”.
Outras medidas incluem a entrega obrigatória das receitas de divisas estrangeiras pelas empresas, taxas de juro de rublo mais elevadas, suspensão dos impostos sobre rendimentos de juros individuais durante dois anos, suspensão do IVA sobre a compra de ouro e “um grande projeto de amnistia de capital”.
O banco central garantirá plenamente a liquidez e as operações ininterruptas das instituições financeiras. Siluanov afirmou: “Estas medidas já produziram resultados. A situação na saída de depósitos está a ser estabilizada e o montante de levantamentos de numerário foi reduzido para quase zero… a balança de pagamentos também está a melhorar. As receitas da conta corrente estão a equilibrar o fluxo de capital”.
Com certeza, o grande aumento das receitas do petróleo e do gás irá compensar qualquer diminuição das receitas noutros sectores, reduzindo assim a contração de empréstimos e a dívida pública, e irá proporcionar fundos para despesas prioritárias.
Mais importante, Siluanov salientou que o governo considera os compromissos sociais como a “prioridade máxima do orçamento”. Disse: “Vamos assegurar o pagamento das pensões, benefícios, salários e outros pagamentos de forma atempada e integral”. Os medicamentos também são fornecidos como planeado, inclusive para crianças com doenças complexas.
“Em Maio, as famílias de baixos rendimentos com crianças começarão a receber novos pagamentos. Reservaremos despesas adicionais para estes fins no sistema orçamental. O Governo começou a implementar medidas anti-crise. A nossa principal prioridade é manter o emprego e os postos de trabalho, e apoiar as pessoas que necessitam de ajuda nas atuais circunstâncias”.
Tudo somado, o prognóstico aqui apresentado manda para o lixo as previsões ocidentais de “apocalipse agora”. A rejeição pela UE da proposta de Washington de sanções às exportações de petróleo da Rússia assegura virtualmente que não haverá qualquer défice de rendimento em Moscou. Em 2021, o Kremlin equilibrou o seu orçamento com uma expectativa de preço do petróleo de 45 dólares por barril. Os preços excedem atualmente os 130 dólares por barril!
Esta abordagem orçamental conservadora do governo isola amplamente a economia dos efeitos das sanções económicas ocidentais. Ironicamente, a pressão está a ser exercida sobre os líderes europeus que estão preocupados com as grandes perturbações no fornecimento de energia da Rússia e têm de manter as suas economias abastecidas com combustível, ao mesmo tempo que punem a Rússia!
Se Putin, pelo contrário, responder com cortes de gás, isso poderá aumentar ainda mais os preços da energia, conduzir à inflação e prejudicar a recuperação económica da Europa. Em termos simples, a Rússia é muito maior do que os Estados Unidos, tem uma população instruída e muito mais riqueza natural do que os russófobos ocidentais poderiam esperar!
Veja-se a exclusão da Rússia do SWIFT. O facto é que enquanto sete bancos russos foram retirados do SWIFT, os visados não incluíam o Sberbank ou o Gazprombank, dois dos maiores bancos da Rússia por ativos. Porquê? Principalmente devido à dependência contínua da Europa da Rússia em relação à energia!
A questão é que a Rússia está intrinsecamente ligada à economia global, detém grandes quantidades de recursos críticos, e tem-se preparado estrategicamente desde 2014 para resistir aos impactos a longo prazo das sanções e de uma retirada do SWIFT.
Além disso, é preciso compreender que embora vários bancos russos estejam agora desligados do SWIFT, ainda podem executar transações internacionais com outros bancos – exceto que devem utilizar métodos mais lentos e menos seguros de comunicação interbancária, tais como a rede obsoleta de telegramas por telex ou chamadas telefónicas e correio electrónico.
A propósito, a Rússia também desenvolveu o seu próprio sistema interno de mensagens de transações financeiras, o Sistema de Transferência de Mensagens Financeiras que poderia servir como uma alternativa funcional ao SWIFT.
Do mesmo modo, as sanções ocidentais contra a Rússia estão condenadas a causar efeitos em cadeia (ripple effects) nos mercados globais, incluindo rupturas na cadeia de abastecimento e preços mais elevados sobre a energia e os produtos agrícolas. Além de ser um exportador chave de petróleo e gás, a Rússia é o maior produtor mundial de paládio e o segundo maior produtor de platina – produtos-chave de platina utilizados no fabrico de semicondutores – e um grande exportador de outros minerais críticos, produtos mineiros e agrícolas.
Claramente, a Rússia não tem falta de parceiros comerciais em toda a Ásia, África e Médio Oriente, uma vez que é obrigada a confiar principalmente em nações não alinhadas com o Ocidente para os mercados comerciais no futuro previsível.
Isto tem grandes implicações. As sanções ocidentais poderiam potencialmente acelerar uma divisão económica global entre o Ocidente e as economias alinhadas com a Rússia que estão abertas a romper com o atual sistema financeiro dominado pelos EUA, acelerando assim uma vasta reorientação económica global.
Certamente, as sanções isolarão a Rússia dos mercados dos EUA e da UE, mas a sua grande reserva de recursos naturais e os seus fortes laços com a China diminuem a probabilidade de se tornar economicamente isolada.
Pelo contrário, se as sanções ocidentais persistirem, as relações económicas com a Rússia poderão ajudar a acelerar o crescimento de um bloco não ocidental na economia global, o que teria um impacto deletério no estatuto do dólar americano como moeda mundial.
De modo bastante óbvio, já existem sinais incipientes de que mentes ponderadas na Europa, especialmente em França e na Alemanha, se sentem perturbadas e estão conscientes da necessidade de reconstruir pontes com a Rússia. A forma como elas se desenvolvem ainda está por ver.
A probabilidade é que assim que a poeira assentar na Ucrânia e que a Rússia tiver obtido o que procura quanto às suas garantias de segurança, um processo de reaproximação entre os principais países europeus e a Rússia começará mais cedo ao invés de mais tarde.
De fato, na reunião de ontem, Putin exprimiu a confiança de que espera uma reversão também por parte dos EUA, tal como a administração Biden fez recentemente em relação à Venezuela e ao Irã. Putin também assinalou que a Rússia pode não recorrer a sanções taco-a-taco contra a Europa, especialmente quanto a exportações de energia.
M. K. Bhadrakumar – diplomata indiano aposentado – resistir.info – 11.03.22
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