A Primavera Árabe: um balanço.

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Primavera que desponta,esperança de amor que desabrocha, sorri, gargalha, espera o vento zéfiro do Verão e da tormenta. Porque hiberna este amor extemporâneo, Se sem Outono, o Inverno não se espera! Aguarda o ciclo, oh semente, não te aborta.

Por José Farhat.

Nada melhor para a continuidade do movimento que foi apelidado de Primavera Árabe do que se fazer um balanço, de tempos em tempos, a fim de reativar o processo quando necessário ou corrigir seus rumos quando desviados de seu objetivo. O desespero e o temor do poeta se justificam pela simples razão de que a Primavera Árabe, na Tunísia, havia tristemente sido esfaqueada pelas costas pelo governo e o povo teve que novamente se levantar, reativá-la e coloca-la no rumo certo.  Nunca se deve esquecer: a Tunísia foi e deve continuar sendo o exemplo.

Conta-se que lá nos idos de 1972 alguém perguntou a Zhou EnLai (1898-1976), então Primeiro-Ministro da China, sobre a importância da Revolução Francesa e ele teria respondido: “Muito cedo para dizer” teria sido sua famosa, mas seguramente não comprovada resposta. É assim mesmo o que ocorre com muitos acontecimentos históricos: são de alcance imprevisível com o passar do tempo.

Quem poderia prever que a autoimolação de um jovem tunisiano desempregado chamado Muhammad Bouazizi, na cidade de Sidi Bouzidi, na Tunísia, se constituiria na semente da Primavera Árabe, semente esta que desabrocha e, pede o poeta para não se abortar, e seguir pelo verão da tormenta desencadeando em 2011 acontecimentos que deixam os dirigentes árabes estonteados?

A realidade dos fatos acontecidos e nos quais se transformarão tem um significado sem precedentes para a juventude árabe sedenta de conquistar o seu lugar na sociedade que lhe deu o ensino, mas lhe negou o trabalho e a liberdade de decidir do seu e do futuro de seu país.

O fardo de decênios de submissão a governantes colocados na liderança dos países árabes da África do Norte e do Oriente Médio por potências alienígenas cujos interesses são diametralmente opostos aos da juventude árabe em particular e do povo árabe como um todo demorou, mas teve no ato desesperado de Bouazizi a centelha que levou o Mundo Árabe para seu futuro radiante.

O momento dos levantes e a velocidade na qual se espalharam podem ter ocorrido como uma surpresa, mas o fato de que aconteceram há muito tempo eram esperados. Com governos através da região malogrando na tarefa de garantir empregos e oportunidades à crescente população de jovens, as condições para os levantes estavam disponíveis já há vários anos.

Um balanço da Primavera Árabe conterá certamente a conclusão de que o nível de frustração devido à não realização das expectativas é comum em muitos países através da região, mas o foco dos protestos que continuam variam de país a país, deixando alguns regimes mais vulneráveis à mudança.

A Tunísia, de onde partiu a centelha que incendiou os países da região é, até neste particular, um exemplo a ser seguido.

Tunísia

O país que iniciou a Primavera Árabe, a Tunísia de Bouazizi, derrubou um dos piores, mais corruptos e mais subservientes ao capital internacional entre ditadores árabes, lutou com valentia, mas não conseguiu eleições democráticas, nem tampouco os empregos e muito menos a Constituição.

Em matéria de segurança, semanas atrás soldados tunisianos foram degolados em Jebel Chaambi e políticos da oposição ao governo foram mortos a tiros de metralhadoras nas ruas da capital.

Nada disto, com certeza, era o que esperava o povo tunisiano como resultado de seu levante e, só aí, o Governo islamita anunciou seus planos para combater o terrorismo.

A crise tomou enormes proporções em julho e todos os partidos de oposição foram às ruas pedindo a queda do governo islamita, acusando-o de leniência com os islamitas radicais salafistas e esquentou a discussão em torno do papel do Islã num país considerado o mais secular do mundo islâmico e não somente do mundo árabe.

Estes acontecimentos paralisaram totalmente a economia do país.

Se atentarmos para outro fato ocorrido semana passada vamos constatar que o governo estava caminhando no rumo inverso daquilo a que almejam os tunisianos e vem atentando contra um contingente importante do povo.

Submisso aos piores entre os salafistas retrógrados que levantam uma falsa bandeira do Islã, o partido islamita Annahda ousou mexer num vespeiro, pois mês passado, fazendo com que dezenas de milhares de tunisianas se manifestassem contra o Artigo 28 da proposta constitucional do país que transforma a mulher em “um complemento do homem”. Os islamitas, na tentativa de eliminar a igualdade homem-mulher, atacam as mulheres, uma estrutura importante da sociedade do país que pretendem governar e aos direitos daquelas que em número igual e com sacrifício igual com os homens, nos levantes de 14 de janeiro de 2011, e expulsaram o ditador Zine al-Abidine Bin Ali do poder. Elas participariam também em todas as campanhas que se seguiram.

O partido Annahda, de orientação que se quer democrática, ainda que islamita teve o voto do povo para ser eleito, mas exagerou ao atribuir aos setores salafistas retrógrados fundamentalistas da sociedade, papel mais importante que necessário e acabou refém. Sim, o partido Annahda, no poder, tornou-se presa fácil para os salafistas e a proposta de uma Constituição, inicialmente correspondente àquilo que almejava o povo tunisiano primaveril como início do caminho rumo à solução de seus problemas sociais, foi sendo enxertada por medidas consideradas inaceitáveis tais como a acima apontada desigualdade homem-mulher e a introdução da Sharia como a base constitucional mais importante.

O Governo do Partido Annahda demorou muito para anunciar uma estratégia antiterrorista, contra os contingentes salafistas. Deixar os terroristas islâmicos à vontade para sugerir rumos constitucionais inaceitáveis foi o menor dos males, pois o terrorismo já se havia entrincheirado e executado ações que ameaçavam a segurança e a economia do país.

Os salafistas há muito tempo já haviam estabelecido campos de treinamento em Jebel Chaambi e vinham se preparando para uma rebelião orientada para o terrorismo que tem al-Qaida como modelo, contrários às aspirações do movimento 14 de janeiro de 2011.

A característica principal do movimento popular da Primavera Árabe na Tunísia é que o povo está acompanhando tudo e não dá trégua ao governo atual e pressionou o governo da Annahda sempre que necessário.

O povo tunisiano finalmente deu um basta ao governo e sob a liderança da União Geral Tunisiana do Trabalho (UGTT), uma organização que engloba o operariado, aquele que ainda mantêm um trabalho e também os desempregados, os intelectuais e estudantes, as organizações femininas, o povo em geral, levaram o governo a concordar em entrar em negociações, iniciadas no sábado, 5 de outubro de 2013, que durarão três semanas.

A imprensa ocidental tem sistematicamente omitido menção ao papel dos trabalhadores de suas organizações em toda a Primavera Árabe, mas agora não dá mais para esconder, já que a iniciativa da UGTT que lançou um conselho de diálogo nacional para tratar das grandes problemáticas políticas, econômicas e sociais nas quais se encontra a Tunísia e de garantir uma gestão eficaz durante um período de transição com base nos princípios seguintes:

– apego ao caráter civil do Estado, ao regime republicano democrático e às aquisições sociais do povo tunisiano;

– respeito aos direitos do homem, garantia das liberdades públicas e individuais e consagração da cidadania e da justiça a fim de romper com o sistema autoritário;

– rejeição da violência sob todas as formas e do extremismo;

– colocar a administração, as mesquitas e as instituições econômicas, educativas e universitárias longe de toda instrumentalização de caráter político;

– considerar as instituições do Estado como as únicas garantidoras e responsáveis pela aplicação da Lei, da proteção das instituições e dos bens dos cidadãos e do respeito aos direitos e liberdades; e,

– programar um novo modelo de desenvolvimento que reduzirá as disparidades sociais e regionais e enfrentará a pobreza através do reforço do investimento e da cultura do trabalho e da produção.

O governo aceitou as condições da UGTT e, de fato, sem que a imprensa mundial tenha dado alarde à iniciativa, devido ao medo de a Tunísia novamente fazer irradiar o anseio de liberdade, declarou aceitar, como de fato já está participando do seguinte programa de consenso exclusivamente sobre:

– as matérias relativas aos feridos e das famílias dos mártires da revolução serão custeadas pelo Estado com o apoio do esforço nacional;

– o tratamento transparente do assunto de emprego e recrutamento dos diplomados desempregados;

– a elaboração de um calendário que fixa a data definitiva da elaboração da Constituição e a data das próximas eleições legislativas e presidenciais;

– a composição de uma Instância superior independente das eleições assim como o acerto de um código eleitoral mediato;

– a composição de uma Instância superior independente de informação;

– a composição de uma Instância provisória da Magistratura;

– a composição da comissão de inquérito sobre a corrupção e a malversação assim como uma comissão de confiscação dos bens espoliados;

– a instauração de uma Instância nacional de justiça transicional fundada na obrigação de ser instalada uma reconciliação;

– a criação de um mecanismo relativo às nomeações administrativas, às designações para os altos postos de maneira a consagrar a neutralidade da administração e evitar que ela caia presa do partido no poder;

– o lançamento das reformas urgentes do sistema bancário apropriado para encorajar o investimento e a criação de postos de trabalho;

– a reforma do sistema securitário e sua reestruturação de maneira a consagrar a segurança republicana.

Em nossa opinião, a iniciativa da UGTT lança, na realidade, uma segunda Primavera Árabe, ao por fim à fracassada primeira iniciada por Bouazizi e pretende com esta nova iniciativa reforçar a união nacional, proteger a transição democrática e garantir uma gestão colegiada do período de transição.

A passagem da Tunísia rumo à democracia tem sido geralmente pacífica se comparada ao Egito, onde os militares demitiram o presidente islamita após protestos populares contra seu governo, e à Líbia onde um governo central frágil está lutando para consolidar sua posição face às milícias que se rebelaram.

Em contraste, o partido Annahda dividiu o podem numa coalizão com dois inexpressivos partidos seculares, com a intenção de escamotear que estava mancomunado com os salafistas a fim de impor um programa estritamente islamita contrário à educação liberal tunisiana, aos direitos das mulheres e liberdade pela qual Bouazizi se imolou e o povo por ela lutou.

O povo foi novamente às ruas, corrigiu os rumos de seu destino e, ao final das próximas três semanas, dará mais um exemplo a ser seguido pela população dos demais 21 países árabes.

Assim que possível, faremos o balanço da Primavera Árabe nos demais países.

José Farhat

Seminário: Um Mundo em Convulsão – Universidade São Paulo – 08/10/2013

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