A nova geopolítica

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Há um assentimento universal de que nós estamos em um período de tensão e fluxo geopolítico

Jeffrey Sachs
Jeffrey Sachs (Foto: Reuters)

Há um assentimento universal de que nós estamos em um período de tensão e fluxo geopolítico. Numa grosseira cronologia, 1815-1914 foi a era da hegemonia britânica, a não-tão-pacífica Pax Britannica. O que se seguiu entre 1914 e 1945 foi um período desastroso de duas guerras mundiais e a Grande Depressão. O final da Segunda Guerra Mundial marcou a ascensão dos EUA como o novo hegemon, bem como o início da Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética. Este período durou de 1947 a 1989. O período entre 1989 e por volta de 2008 tem sido descrito (corretamente ou erradamente) como um mundo unipolar, com os EUA sendo amplamente considerado como a única superpotência. Na década passada, nós entramos numa nova era geopolítica, mas que tipo de era?

Há pelo menos cinco teorias maiores sobre a geopolítica atual. As primeiras três são variações da Teoria de Estabilidade Hegemônica; a quarta é a importante escola do realismo internacional. A quinta é a minha teoria preferida do multilateralismo, baseada na proeminente importância da cooperação global para resolver os prementes problemas globais.

A Teoria de Estabilidade Hegemônica, favorecida pelas elites estadunidenses na política, no governo e na academia, sustenta que os EUA permanece sendo o hegemon do mundo, a única superpotência, apesar de ser um hegemon desafiado por um competidor em ascensão, a China, e por um competidor menor, mas armado nuclearmente, a Rússia.

A Teoria da Competição Hegemônica, algumas vezes apelidada de teoria da Armadilha de Thucydides, sustenta que a ascensão da China conduziu a um período de confrontação entre os EUA e a China, juntamente com a atual confrontação dos EUA com a Rússia. A competição EUA-China é análogada àquela entre Esparta e Atenas nas Guerras do Peloponeso, com a China desempenhando o papel de Atenas, a potência ascendente no quarto século A.C. no mundo helênico, desafiando Esparta, o poder incumbente. .

A teoria do Declínio Hegemônico focaliza no fato que os EUA não estão mais dispostos, nem capazes, de desempenhar o papel de estabilizador global (se alguma vez o fez). Segundo esta teoria, o nosso atual período será parecido ao período de declínio britânico após a Primeira Guerra Mundial e antes da ascensão da hegemonia estadunidense. A teoria do Declínio Hegemônico sustenta que o declínio do hegemon conduz à instabilidade global.

A teoria Realista sustenta que a geopolítica é definida pelas políticas das grandes potências, com a China, os EUA, a União Europeia, a Rússia e cada vez mais a Índia, desempenhando o papel das grandes potências e compartilhando o palco mundial com as potências regionais (como o Brasil, a Indonésia, o Irã, o Paquistão e a Arábia Saudita, entre outros).

A teoria Multilateralista, à qual eu subscrevo, sustenta que apenas a cooperação global e o multilateralismo, organizado em torno das instituições da ONU, podem no salvar de nós mesmos – seja da guerra, das tecnologias perigosas ou da mudança climática induzidas por seres humanos. Muito frequentemente, o multilateralismo é descartado como sendo excessivamente idealista, porque ele clama por cooperação entre as nações; no entanto, eu argumento que ele é efetivamente mais realista do que a teoria Realista.

Obviamente, há várias outras abordagens importantes à geopolítica, incluindo as teorias marxistas que se focalizam nos interesses e o poder do capital financeiro globalmente móvel – a teoria de centro-periferia da Immanuel Wallerstein e a teoria de choque-de-civilizações de Samuel Huntington. Estas são todas bem conhecidas e têm sido amplamente debatidas. Por questão de brevidade, eu focalizarei nas três teorias – a do declínio hegemônico, o realismo e o multilateralismo.

Os impulsionadores econômicos da mudança geopolítica de longo-prazo

Os EUA eram de longe a potência-líder do mundo ao final da Segunda Guerra Mundial. Segundo as estimativas do historiador Angus Maddison (2010), os EUA produziram 27,3% do produto mundial (medido em preços internacionais) desde 1950, apesar de consituirem apenas 6% da população mundial (e sendo atualmente apenas 4,1%). A União Soviética era a maior economia, com aproximadamente um-terço dos EUA, enquanto a China era a terceira, com cerca de um-sexto. A vantagem estadunidense não se dava apenas no PIB total, mas na ciência, na tecnologia, na educação superior, na profundidade do mercado de capitais, na sofisticação da organização dos negócios e na qualidade e quantidade da infraestrutura física das empresas multinacionais estadunidenses que se espalhavam pelo globo para criarem cadeias globais de suprimento.

A predominância dos EUA declinou gradualmente desde 1950, principalmente porque outras partes do mundo gradualmente alcançaram os EUA em tecnologias avançadas, habilidades e infraestruturas físicas. Como prevê a teoria, a globalização promoveu a propagação do conhecimento científico e tecnológico, a educação superior e a infraestrutura moderna. O Leste da Ásia foi o grade beneficiário da globalização. A decolagem do Leste Asiático começou com a rápida reconstrução do Japão durante o período de 1945-1960, seguido pela sua década de duplicação da renda nos anos de 1960. Por sua vez, o Japão proveu um mapa do caminho para os quatro Tigres Asiáticos (Coreia, Taiwan, Hong Kong e Cingapura), que iniciaram o seu rápido crescimento nos anos de 1960 e depois para a China, começando no final dos anos de 1970, com as reformas de Deng Xiaoping e a abertura do país para o mundo. Segundo as estimativas de Maddison, as 16 maiores economias do Leste Asiático produziram 15,9% do produto mundial em 1950, 21,7% em 1980 e 27,8% em 1990. Nos anos de 1990, a Índia também iniciou uma era de abertura econômica e crescimento rápido.

Quando a União Soviética se dissolveu em 1991, os EUA não enfrentaram qualquer competidor maior pela liderança global. Porquanto a economia da Europa Ocidental era amplamente comparável em tamanho à economia estadunidense, a Europa Ocidental permaneceu dependente dos EUA para a sua segurança militar e, em qualquer evento, foi um grupo disjunto de nações com políticas exteriores geralmente subordinadas aos EUA. A Ásia Oriental havia crescido rapidamente, porém era ainda menos uma força geopolítica do que a Europa. Segundo as medições do FMI, o PIB da China, medido em dólares internacionais constantes, foi 17,5% do PIB estadunidense, apesar da sua população constituir 4,6 vezes o seu tamanho. Portanto, a sua renda per capita foi de meros 3,8% daquela dos EUA, segundo as estimativas do FMI. As tecnologias e a capacidade militar da China estavam décadas atrás daquelas dos EUA e o seu arsenal nuclear era pequeno. Talvez seja compreensível que os fazedores de políticas em Washington pressupunham que os EUA seriam a única superpotência mundial por décadas.

O que eles falharam em antecipar, obviamente, foi a capacidade da China de crescer rapidamente por décadas a vir. Entre 1991 e 2021, o PIB da China (medido em dólares internacionais constantes) cresceu 14,1 vezes, enquanto que o PIB estadunidense cresceu 2,1 vezes [no mesmo período]. Segundo as estimativas do FMI, em 2021 o PIB da China, medido em preços internacionais constantes de 2017, era 18% maior do que o PIB dos EUA. O PIB da China per capita aumentou de 3,8% daquele dos EUA em 1991 para 27,8% em 2021 (estimativas do FMI em dólares internacionais constantes).

Os ganhos rápidos da China e produto e produto por pessoa foram sustentados pelos rápidos avanços chineses em conhecimento tecnológico, habilidade de inovar, qualidade da educação em todos os níveis e a atualização e modernização da infraestrutura. A erudição ingênua e algumas vezes racista estadunidense desmereceu o sucesso da China como nada mais do que a China roubando o know-how estadunidense, como se os EUA fossem a única sociedade que pode aproveitar a ciência e a engenharia modernas, como se ele mesma não se apoiasse nos avanços científicos e tecnológicos feitos alhures. Na verdade, a China tem se equiparado ao dominar o conhecimento tecnológico avançado e tomando medidas para se tornar uma importante inovadora por seus próprios méritos.

Tampouco deveríamos negligenciar o ascendente poder econômico tanto da Índia quanto da África – a última incluindo 54 países da União Africana. O PIB da Índia cresceu 6,3 vezes entre 1991 e 2021, aumentando de 14,6% do PIB estadunidense para 44,3% (tudo medido em dólares internacionais). O PIB da África cresceu significativamente durante o mesmo período, alcançando em última análise de 13,5% do PIB dos EUA em 2022. Mais importante, neste contexto, a África também está se integrando política e economicamente, com passos importantes na política e na infraestrutura física para criar um mercado único intercontinental na África.

Nos 30 anos passados, três mudanças econômicas básicas transformaram a geopolítica. A primeira é que a porção dos EUA no produto global declinou de 21,0% em 1991 para 15,7% em 2021, enquanto a China aumentou de 4,3% em 1991 para 18,6% em 2021. A segunda é que a China ultrapassou os EUA no PIB total e se tornou o principal parceiro comercial de grande parte do mundo. A terceira é que os BRICS – constituído pelo Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul – também superaram os países do G7 em produto total. Em 2021, os BRICS tinham um PIB combinado de US$ 42,1 trilhões (medidos em preços internacionais constantes de 2017), comparados com US$ 41,0 trilhões dos G7. Em termos de população combinada, os BRICS – com uma população de 3,2 bilhões em 2021 – é 4,2 vezes a população combinada dos países do G7, com 770 milhões. Em resumo, a economia não é mais dominadas pelos EUA ou lideradas pelo Ocidente. A China tem um tamanho econômico total comparável ao dos EUA e os grandes países de renda média são um contrapeso às nações do G7. É notável que quatro das presidências consecutivas do G20 serão cumpridas por países desenvolvidos de renda média: Indonésia (2022), Índia (2023), Brasil (2024) e África do Sul (2025).

Visões contrastantes sobre a geopolítica

À medida que a China se equiparou ou ultrapassou os EUA em tamanho econômico e se tornou o principal parceiro comercial de muitos países do mundo, e como os BRICS se equipararam com o G7 em tamanho econômico total, um debate irado se espraia nos EUA e globalmente sobre o papel e poder mutantes dos EUA e as implicações para o futuro da governança global e as relações exteriores. Como foi mencionado acima, há cinco escolas de pensamento, as quais eu revisarei agora com mais detalhes.

A teoria da Estabilidade Hegemônica permanece sendo a escola de pensamento dominante nos EUA, pelos menos nos círculos de liderança nos think-tanks e centros acadêmicos da Costa Leste dos EUA. Segundo esta visão, os EUA, e somente os EUA, podem manter a hegemonia geopolítica e, assim, prover estabilidade ao mundo. Quando os EUA falam sobre uma “ordem baseada em regras”, eles não estão falando do sistema da ONU nem da lei internacional. Eles estão falando sobre uma ordem liderada pelos EUA, na qual Washington, em consultas com os seus aliados, escrevem as regras globais.

Segundo esta visão, a China permanece muito atrás dos EUA em todas as categorias-chave do poder: econômica, militar, tecnológica e de ‘softpower’. A Rússia é vista como uma potência regional declinante, quase defunta – apesar de ser uma com um grande arsenal nuclear> Nesta escola de pensamento, a ameaça nuclear pode ser contida através de contra-ameaças e dissuasão. A hegemonia estadunidense assegurará que a Rússia não desempenhe qualquer papel geopolítico maior no futuro. Esta visão hegemônica, conhecida como neoconservadorismo nos EUA, encontra a sua expressão numa ampla gama de políticas.

A guerra na Ucrânia forma uma parte central da estratégia de Washington para uma hegemonia continuada dos EUA. Porquanto os fazedores de políticas estadunidenses lamentem a destruição e as mortes na Ucrânia, eles também dão as boas-vindas à oportunidade de empurrar a expansão da OTAN para o leste e de fazer sangrar a Rússia através de uma guerra de atrito. A política da elite de Washington não tem pressa para terminar a guerra.

Tampouco é ansioso [?] olhar mais profundamente para as raízes da guerra, a qual certamente foi provocada em parte pelos EUA na sua batalha contra a Rússia por influência política e militar na Ucrânia. Esta competição ficou em brasa depois que George W. Bush empurrou a OTAN em 2008 para se comprometer com a expansão à Ucrânia e à Georgia. Isto fez parte de um plano de jogo de longo prazo desenhado por Zbigniew Brzezinski em seu livro de 1997 ‘The Grand Chessboard’ [O Grande Tabuleiro de Xadrez], para acabar com a capacidade da Rússia de projetar o seu poder na direção da Europa Ocidental, o Mediterrâneo oriental, ou o Oriente Médio.

Presumivelmente, a Rússia lutará a qualquer custo para evitar a expansão da OTAN para a Ucrânia. Quando o presidente pró-Rússia da Ucrânia Viktor Yanukovych – que favoreceu a neutralidade da Ucrânia ao invés da expansão da OTAN – foi derrubado com apoio financeiro e logístico estadunidense no início de 2014, a guerra russo-craniana começou. A Rússia retomou a Crimeia e os separatistas pró-russos reivindicaram uma parte do Donbass. A guerra se escalou desde 2014, mais dramaticamente com a invasão russa em 24 de fevereiro de 2022. Por sua vez, o G7 e a OTAN se comprometeram a apoiar a Ucrânia por quanto tempo fosse necessário, com a meta de enfraquecer a Rússia à longo prazo.

Além de financiar e armar a Ucrânia, agora os EUA adotaram a estratégia de conter a China – i.e., impedindo o progresso econômico e tecnológico continuado da China. A política de contenção vis-à-vis a China é uma mímica da estratégia estadunidense vis-à-vis a União Soviética entre 1947 e 1991. As políticas de contenção da China incluem aumentos de tarifas alfandegárias sobre produtos chineses; ações para aleijar as empresas chinesas de telecomunicações de alta tecnologia, como a Huawei e a ZTE; banimento de exportações de semicondutores de alta tecnologia e equipamentos para a fabricação de semicondutores para a China; dissociação das cadeia de fornecimento estadunidenses da China; criar novos blocos comerciais, como a Estrutura Econômico Indo-Pacífica, que excluem a China; e uma “lista de entidades” de empresas chinesas que estão barradas, de uma maneira ou de outra, de acesso a financiamentos, comércio e tecnologia dos EUA. Na frente militar, os EUA estão formando novas alianças anti-China – como a AUKUS, com o Reino Unido e a Austrália, neste caso para criar uma nova esquadra nuclear e uma base no norte da Austrália para policiar o Mar do Sul da China. Os EUA também têm como uma meta incrementar o seu apoio militar para Taiwan – resumindo, em uma nova frase dos neocons: tornar Taiwan num “porco-espinho”.

A principal visão competidora atual sobre a geopolítica é a teoria de Competição Hegemônica, focalizando-se no iminente conflito entre os EUA e a China. Esta teoria é efetivamente uma variante da teoria de Estabilidade Hegemônica. Ela argumenta que os EUA poderão perder o seu status hegemônico para a China e que, seja como for, uma competição amarga entre os dois países é virtualmente inevitável. A falha principal da visão de Competição Hegemônica é a sua crença que a China quer se tornar o próximo hegemon global. Verdade é que os líderes chineses não confiam nos EUA, nem na Europa, especialmente haja vista o sofrimento da China nas mãos de potências imperiais exteriores durante os séculos XIX e XX. A China visa um mundo no qual os EUA não é o hegemon. No entanto, há poucas evidências persuasivas que a China queira substituir os EUA como hegemon, ou que poderia sê-lo mesmo que assim desejasse.

Considere que a China ainda é um país de renda média, necessitando as próximas décadas para se tornar um país de alta renda. Também considere que a população da China provavelmente declinará marcadamente na próxima década. Dentro deste contexto, a China também envelhecerá marcadamente, com a idade mediana aumentando de 47 anos atualmente para 57 anos em 2100 – segundo projeções da ONU. Finalmente, considere que o estadismo da China durante séculos jamais buscou ser um império global. O Reino do Meio sempre foi suficiente. A China não lutou uma única guerra estrangeira em 40 anos e ela tem umas poucas bases militares pequenas no exterior, comparado com as centenas operadas pelas forças militares estadunidenses.

Ao invés das aspirações hegemônicas da China – que eu acredito que, na verdade, não existam – o problema real é o chamado “Dilema de Segurança”, segundo o qual, tanto a China quanto os EUA interpretam mal as ações defensivas do outro lado como sendo ofensivas, caindo, assim, num modo escalatório. Por exemplo, enquanto a China constrói as suas forças militares no Mar do Sul da China, segundo a sua visão, para proteger as suas rotas navais vitais, Washington interpreta isso como uma ação agressiva da China, mirando os aliados dos EUA na região. À medida que os EUA formam novas alianças, como a AUKUS, e fortalece alianças existentes, a China considera estas como  flagrantes tentativas hegemônicas para conter a China. Mesmo quando ações particulares são verdadeiramente defensivas em natureza – e não todas elas o são – elas são prontamente mal entendidas pelo outro lado. Este é efetivamente uma razão importante pela qual a Armadilha de Thucydides gera uma guerra: na verdade, não por que os dois países queiram a guerra, mas porque eles tropeçam nisso ao interpretar mal as ações do outro lado.

A teoria do Declínio Hegemônico é um pouco diferente. Ao invés de enfatizar a batalha entre a China e os EUA, esta terceira teoria enfatiza as implicações do declínio hegemônico estadunidense, o qual ela dá de barato. A teoria do Declínio Hegemônico começa com a ideia que o mundo precisa de bens públicos globais, tal como as políticas de estabilização macroeconômicas, o controle dos armamentos e os esforços comuns contra as mudanças climáticas induzidas por seres humanos. Segundo esta teoria, para assegurar estes bens públicos, um hegemon precisa carregar o fardo de prover os bens públicos globais. No século XIX, a Grã-Bretanha subscreveu a Pax Britânica. Desde 1950, os EUA supriram os bens públicos globais. No entanto, com o declínio gradual dos EUA, não há mais um hegemon para garantir a estabilidade global. Assim sendo, nós enfrentamos um mundo de caos, não devido à competição EUA-China, mas porque nenhum país ou região pode coordenar os esforços globais para prover bens públicos globais.

Charles Kindkeberger, o historiador econômico do MIT, foi o originador e o mais persuasivo proponente da teoria do Declínio Hegemônico, aplicando-o à Grande Depressão in seu perspicaz livro ‘The World of Depression: 1929-1939’ (1973). Ele argumentou que, quando a Grande Depressão ocorreu, uma cooperação global era necessária para tratar das dívidas entre países, bancos falidos, déficits de orçamentos e o padrão ouro. No entanto, o Reino Unido foi gravemente enfraquecido pela Primeira Guerra Mundial e a prolongada crise econômica do final dos anos de 1920, de modo que ele foi incapaz de agir como um hegemon.

Todas as três teorias hegemônicas presumem que os hegemons são centrais para a geopolítica e permanecerão sendo-o. A primeira presume que os EUA permaneçam como o hegemon. A segunda, que os EUA e a China competem para serem o hegemon; e a terceira, lamenta a ausência de um hegemon exatamente quando precisamos ter um. Esta terceira teoria, apesar de declarar os EUA como um já-foi-hegemon, de alguma maneira ainda é lisonjeira: ‘après l’Etats Unis, le deluge’ [Após os EUA, o dilúvio].

A teoria Realista nega o papel central da hegemonia e talvez questionaria se os EUA jamais alguma vez foram verdadeiramente o hegemon global. Segundo os realistas, a paz requer um equilíbrio habilidoso entre as grandes potências. A essência da teoria realista é que não existe uma única potência que possa, ou deva presumir pelo resto; todos devem gerenciar prudentemente as suas políticas para evitar provocar um conflito com as outras potências. Os principais realista, como Henry Kissinger e John Mearsheimer, por exemplo, apelam por um final negociado para a Guerra da Ucrânia, argumentando sabiamente que a Rússia não desparecerá do mapa, ou da sua importância geopolítica, enfatizando que a guerra foi parcialmente provocada pelo passo em falso dos EUA de cruzar as linhas vermelhas da Rússia, especialmente o concernente à expansão da OTAN para a Ucrânia e a Geórgia. Os realistas argumentam à favor da paz através da força, armando os aliados o quanto seja necessário e ficando de guarda contra ações agressivas de potenciais adversários que cruzem as linhas vermelhas estadunidenses. A paz, na visão realista, é conseguida através do equilíbrio de poder e a potencial alocação da força, não através de boa vontade ou altos ideais. A dissuasão faz diferença. A China é um competidor que deve ser correspondido economicamente, tecnologicamente e militarmente, não necessariamente como um inimigo militar. A guerra pode ser evitada. O mais famoso modelo histórico de um realista é a representação feita por Kissinger do Concerto da Europa no século XIX que manteve a paz na maior parte do século.

O maior desafio enfrentado pelos realistas é que manter um equilíbrio de poder é muito difícil quando as capacidades relativas das maiores potências estão em grande fluxo. O Concerto da Europa se rompeu principalmente porque duas potências maiores estavam em ascensão econômica. A Alemanha ultrapassou a Grã-Bretanha em PIB (estimativas de Maddison) em 1908. O império russo também estava crescendo economicamente, com um PIB ao nível da Alemanha de 1870 em diante. A Grã-Bretanha temia a ascensão da Alemanha, a Alemanha temia uma guerra em duas frentes contra a Grã-Bretanha e a Rússia – o que, obviamente, foi o que aconteceu em 1914. Segundo muitos historiadores, a Alemanha pressionou pela guerra em 1914 por convicção que um atraso significaria uma Rússia mais poderosa no futuro.

A geopolítica é uma resolvedora de problemas?

O problema essencial com estas quatro teorias prevalentes da geopolítica é que elas veem a geopolítica quase que inteiramente como um jogo de ganhar e perder dentre as grandes potências, ao invés de ser a oportunidade de reunir recursos para enfrentar as crises de escala global. A teoria do Declínio Hegemônico reconhece a necessidade dos bens públicos globais, porém alega que somente um hegemon proverá estes bens públicos globais.

A teoria Multilateral começa da premissa que o mundo necessita urgentemente de cooperação geopolítica para resolver os desafios de escala global, como as mudanças climáticas induzidas por seres humanos e a instabilidade financeira, e para evitar a guerra entre as grandes  potências. O centro da visão multilateralista é a crença que os bens públicos globais podem ser providos de maneiras cooperativas pelos estados membros da ONU, ao invés de um único hegemon. O foco está no papel construtivo da lei internacional, das instituições financeiras internacionais e os tratados internacionais, tudo sob a estrutura da Carta da ONU e da Declaração Universal dos Direitos Humanos e apoiada pelas instituições da ONU.

Argumenta-se frequentemente que esta visão seja irrealista e é descartada como sendo idealista demais. Há muitas razões plausíveis para a dúvida: a ONU é fraca demais; os tratados são inaplicáveis; os países pegam carona grátis nos acordos internacionais; e o poder de veto dos  cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (China, França, Rússia, Reino Unido e EUA) paralisa a ONU. Estes pontos são verdadeiros, porém não são decisivos, na minha visão. A cooperação pode ser fortalecida se o caso à favor desta for melhor compreendido. Mais importante, nenhuma das três teorias hegemônicas, nem o realismo, oferecem soluções para as nossas crises globais.

A teoria da Estabilidade Hegemônica é falha, porque os EUA não são mais suficientemente fortes nem interessados em carregar o fardo de prover a estabilidade hegemônica. No final dos anos de 1940, os EUA estavam prontos a financiar e apoiar os bens públicos globais, incluindo o estabelecimento da ONU, a Instituição de Bretton-Woods, o GATT, o Plano Marshall e outros. Atualmente, os EUA sequer ratificam a vasta maioria dos tratados da ONU. Eles quebram as regras do GATT, furtam-se da descarbonização, provêm fundos insuficientes para as instituições da ONU e de Bretton-Woods e dão uma ninharia do seu PIB (0,16%) como ajuda estrangeira.

A teoria da Competição Hegemônica é falha porque pressagia conflitos, ao invés de soluções para os problemas. No melhor dos casos, ela é uma explicação da turbulência global, mas não uma estratégia para a paz, a segurança ou a resolução global de problemas. Ela é a predicação da crise. É crucial lembrar que tanto Sparta quanto Atenas sofreram com as Guerras do Peloponeso.

A abordagem realista é muito mais acurada, praticável e útil do que as teorias hegemônicas. No entanto, a abordagem Realista também sofre de três fraquezas maiores. Primeiramente, enquanto ela conclama por um equilíbrio de poder para manter a paz, não há um equilíbrio permanente de poder. Os equilíbrios passados se tornaram rapidamente nos desequilíbrios atuais.

Em segundo lugar, como ocorre com a teoria do jogo que sustenta o Realismo, tanto a teoria dos jogos quanto o Realismo subestimam na prática o potencial para a cooperação. Segundo a abordagem Realista, a não-cooperação dentre as nações é suposta de ser o único resultado viável da geopolítica, porque há um escopo muito maior para uma cooperação de sucesso (p.ex.: no jogo experimental do Dilema do Prisioneiro) do que a teoria prevê. Este ponto tem sido enfatizado por décadas por Robert Keohane e também foi enfatizado pelo falecido John Ruggie.

Em terceiro lugar, e mais importante, o Realismo falha porque ele falha em resolver o problema dos bens públicos globais que são necessários para tratar das crises ambientais, as crises financeiras, as crises de saúde e outras. Nenhum hegemon singular proverá os investimentos globais necessários. Uma abordagem cooperativa global é necessária para compartilhar os custos e propagar amplamente os benefícios.

O mapa do caminho para alcançar o multilateralismo no século XXI requer um ensaio separado. Em resumo, o multilateralismo do século XXI deverá ser construído sobre dois documentos fundacionais, a Carta da ONU e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e a família das instituições da ONU. Os bens públicos globais deverão ser financiados por uma importante expansão dos bancos multilaterais de desenvolvimento (incluindo o Banco Mundial e os bancos regionais de desenvolvimento) e o FMI. O novo multilateralismo deverá basear-se em metas globalmente acordadas – especialmente o Acordo do Clima de Paris, o Acordo sobre a Biodiversidade e as Metas para o Desenvolvimento sustentável. Ele deverá prover as novas tecnologias de ponta, incluindo a conectividade digital e a inteligência artificial, sob o âmbito da lei internacional e da governança global. Ele deverá reforçar, implementar e construir-se sobre os acordos vitais sobre o controle de armas e a desnuclearização. Finalmente, ele deverá captar forças das antigas sabedorias das grandes religiões e tradições filosóficas. Há muito trabalho à ser feito para se construir o multilateralismo, no entanto o próprio futuro está em jogo.

Jeffrey D. Sachs é Professor da Columbia University (NYC) e Diretor do Centro para o Desenvolvimento Sustentável e Presidente da Rede de Soluções Sustentáveis da ONU. Ele atualmente serve como defensor da iniciativa para Metas de Desenvolvimento Sustentável sob o Secretário-Geral da ONU, António Guterres.

Publicado originalmente pelo CIRSD na sua edição de Horizons # 22 — Inverno 2023.

Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz

Fonte: Brasil 247

 

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