“A não ser que o mundo aceite apartheid, limpeza étnica e roubo de território, Israel é inviável, imoral e ilegal”

Share Button

O Ra­madã e as pro­cis­sões is­lâ­micas à Es­pla­nada das Mes­quitas em Je­ru­salém foram o úl­timo ga­tilho para o Es­tado is­ra­e­lense ini­ciar nova onda de ata­ques com fins de jus­ti­ficar sua agressão e ocu­pação da Pa­les­tina. Quando veio o cessar fogo, em 21 de maio, eram 243 pa­les­tinos e 12 is­ra­e­lenses mortos, e epi­só­dios mar­cantes como a des­truição do prédio do centro de im­prensa de Gaza, der­ru­bado pela ar­ti­lharia do exér­cito is­ra­e­lense. A nar­ra­tiva que su­gere um con­flito si­mé­trico pa­rece morta e é sobre isso que o Cor­reio pu­blica longa en­tre­vista com Ualid Rabah, pre­si­dente da Fe­de­ração Árabe Pa­les­tina do Brasil (Fepal).

Com um de­ta­lhado res­gate his­tó­rico do pro­jeto de cons­trução da “Grande Is­rael”, Ualid Rabah é ca­te­gó­rico: “o que Is­rael e si­o­nistas, apoi­a­dores e amigos pre­cisam dis­cutir é: há ou não há apartheid em Is­rael? Há ou não há ex­pe­ri­mentos ge­no­cidas? Há ou não há lim­peza ét­nica? Há ou não há seis mi­lhões de re­fu­gi­ados pa­les­tinos? São seis mi­lhões de ter­ro­ristas ex­pulsos a partir de 1948? O Hamas existia em 1897, quando o si­o­nismo re­solveu ini­ciar seu pro­jeto co­lo­nial na Pa­les­tina e que de­veria haver lim­peza ét­nica para seu ‘su­cesso’?”

Além de ex­plicar como Is­rael usou da pan­demia para pro­mover o que, ine­qui­vo­ca­mente, chama de lim­peza ét­nica, o pre­si­dente da Fepal elenca di­versos epi­só­dios de sa­bo­tagem da vida po­lí­tica, so­cial e re­li­giosa pa­les­tina, que teve de can­celar suas elei­ções le­gis­la­tivas de 22 de maio, o que talvez se re­pita nas pre­si­den­ciais de 31 de julho. E ataca não só as ale­ga­ções como a pró­pria noção de “an­tis­se­mi­tismo” atri­buída aos crí­ticos do Es­tado is­ra­e­lense.

“(o termo) Foi criado por eu­ro­peus, em solo eu­ropeu, por eu­ro­peus não ju­deus para cri­mi­na­lizar eu­ro­peus de fé ju­daica. Que, aliás, não são nem ja­mais serão se­mitas. É um termo equi­vo­cado cu­nhado na Eu­ropa para de­signar pes­soas de fé ju­daica (o termo, em sua com­pre­ensão ainda vi­gente, foi cu­nhado pelo jor­na­lista alemão Wi­lhelm Marr, em 1879/1880, e di­ri­gido para de­signar e cri­mi­na­lizar os pro­fes­santes do ju­daísmo na Eu­ropa, acu­sados de cul­tu­ral­mente ‘in­fe­ri­ores’ aos ger­mâ­nicos, e até mesmo de, com seu ale­gado atraso, pre­ju­di­carem o de­sen­vol­vi­mento da ci­vi­li­zação ariana ‘su­pe­rior’). Por­tanto, fa­lamos de an­ti­ju­daísmo cha­mado, a esta al­tura ins­tru­men­tal­mente, de an­tis­se­mi­tismo. Quanto a ser ou não ser se­mitas, nós é quem somos 100% se­mitas. Os árabes em geral são 100% se­mitas. Os ju­deus em es­ma­ga­dora mai­oria não são se­mitas, a não ser os árabes e pa­les­tinos de fé ju­daica”.

Ualid Rabah ainda lembra que, no plano in­terno, o cha­mado “campo da paz” se en­contre em seu mo­mento de maior re­fluxo na so­ci­e­dade is­ra­e­lenses e faz re­fle­xões sobre se, no fim das contas, tudo o que o mundo vê não era ine­xo­rável, con­si­de­rando-se os ob­je­tivos reais do pro­jeto his­tó­rico si­o­nista, que ja­mais aceitou a pos­si­bi­li­dade dos dois Es­tados na­quilo que se com­pre­ende por Pa­les­tina His­tó­rica.

“Se tudo é ima­gi­nado como ‘Es­tado judeu’, como tudo po­deria ser di­fe­rente do que es­tamos vendo? O Es­tado con­ce­bido por David Ben Gu­rion só podia ser um Es­tado Nação judeu com pu­reza ét­nica. Por isso re­a­liza-se a lim­peza ét­nica, para que na pior das hi­pó­teses (ao pro­jeto si­o­nista) fique uma mai­oria es­ma­ga­dora ju­daica. É isso que entra em vigor em 2018 com a apro­vação da Lei do Es­tado-nação Judeu, a partir da qual apenas o judeu é ci­dadão pleno e o he­braico é a língua na­ci­onal única”, re­sumiu.

De­pois das longas ex­pla­na­ções sobre a his­tória da dis­puta no ter­ri­tório his­tó­rico, Rabah sin­te­tiza os pontos es­sen­ciais de uma paz justa. “Cessar a ocu­pação da Pa­les­tina; o di­reito de re­torno dos re­fu­gi­ados deve ser res­pei­tado; deve-se per­mitir a re­a­li­zação do Es­tado Na­ci­onal pa­les­tino; deve haver pro­teção in­ter­na­ci­onal à po­pu­lação pa­les­tina; deve haver so­be­rania pa­les­tina sobre Je­ru­salém; os pa­les­tinos devem ter di­reito de guarda de suas fron­teiras; os pa­les­tinos devem ter di­reito de ir e vir; e deve acabar o re­gime de apartheid”.

A en­tre­vista com­pleta com Ualid Rabah pode ser lida a se­guir.

A unidade palestina é fundamental contra a ocupação”. Entrevista com Ualid Rabah, presidente da Fepal | Jornal Água Verde

Cor­reio da Ci­da­dania: No início do mês do Ra­madã, uma série de ata­ques is­ra­e­lenses a pro­cis­sões de pa­les­tinos marcou o início de novo ca­pí­tulo da agressão a Pa­les­tina, num con­texto as­si­mé­trico tra­tado como “con­flito” pela co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal. Mas o nú­mero de mortes de lado a lado evi­dencia que tem a força co­er­ci­tiva e re­a­liza seu pro­jeto de ocu­pação ter­ri­to­rial. Por que isso tudo acon­teceu agora?

Ualid Rabah: É sempre im­por­tante des­tacar que a si­tu­ação na Pa­les­tina é de ocu­pação de todo o ter­ri­tório pa­les­tino, no qual em parte dele se re­a­liza por au­to­pro­cla­mação o Es­tado de Is­rael desde 14 de maio de 1948. Tudo o que se deu desde então foi pla­ne­jado, no caso, a lim­peza ét­nica da Pa­les­tina. Tudo que acon­teceu na his­tória desde então fez parte do plano, é se­gui­mento na­tural. Nos úl­timos dois, três meses (na ver­dade desde o início da pan­demia) po­demos narrar que o pro­cesso cu­mu­la­tivo levou a mais ou menos o que vamos falar aqui.

Em abril do ano pas­sado, quando a pan­demia co­meçou a se apre­sentar como re­al­mente pe­ri­gosa no mundo todo, a si­tu­ação fi­cando avas­sa­la­dora em al­guns países, havia poucos casos na Pa­les­tina, que numa ten­ta­tiva de pre­venção fez de­cretos de iso­la­mento so­cial. E havia só uma morte até 11 de abril, de uma mu­lher de 60 anos numa pe­quena ci­dade cha­mada Tubas; os casos graves ainda eram muito poucos. Essa mu­lher que morreu tinha pa­ren­tesco com um dos 60 mil pa­les­tinos que tra­ba­lham em Is­rael onde, ao mesmo tempo, a pan­demia já co­brara de­zenas ou cen­tenas de vidas e o vírus se alas­trava muito mais po­de­ro­sa­mente. Neste ce­nário, Is­rael co­meçou a impor di­fi­cul­dades às uni­dades de saúde pa­les­tinas, es­pe­ci­al­mente em Je­ru­salém Ori­ental, con­si­de­rada a Je­ru­salém ocu­pada de acordo com o Di­reito In­ter­na­ci­onal.

Nesta lo­ca­li­dade, temos uma con­cen­tração muito grande de ju­deus ul­tra­or­to­doxos, que es­tavam in­clu­sive cri­ando muitas di­fi­cul­dades para o Es­tado is­ra­e­lense, ao se ne­garem a re­co­nhecer a pan­demia e, em de­cor­rência au­to­má­tica, também a cum­prirem todas as me­didas pro­te­tivas contra o vírus, como iso­la­mento, uso de más­caras, hi­gi­e­ni­zação etc. Ao mesmo tempo, in­fe­liz­mente, crescia uma con­duta agres­siva frente aos pa­les­tinos. Por­tanto, ao passo que as au­to­ri­dades de ocu­pação im­pe­diam o aten­di­mento a pa­les­tinos, es­pe­ci­al­mente em Je­ru­salém Ori­ental e He­bron, na Cis­jor­dânia, onde, cu­ri­o­sa­mente, se viam ju­deus or­to­doxos cus­pirem em pa­les­tinos com fins de con­ta­miná-los, in­clu­sive pen­sando que eles, por algum mo­tivo, não o se­riam. É neste con­texto que se alastra o vírus, ainda que não sig­ni­fique que não fosse se alas­trar, tal como se deu no mundo todo. En­tre­tanto, as me­didas pa­les­tinas de con­tenção do vírus foram sa­bo­tadas por Is­rael.

Neste pe­ríodo, co­meça a surgir a hi­pó­tese da va­cina e sua pers­pec­tiva. O que faz Is­rael? Eles re­solvem dizer que vão im­portar va­cina pra sua po­pu­lação. A OMS e a co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal dizem que o país deve va­cinar a po­pu­lação pa­les­tina, que está sob sua res­pon­sa­bi­li­dade. Isso porque se­gundo a le­gis­lação in­ter­na­ci­onal e a 4ª Con­venção de Ge­nebra, a po­tência ocu­pante se res­pon­sa­bi­liza pela po­pu­lação ocu­pada, o que in­clui cui­dados sa­ni­tá­rios. Até porque, como po­tência ocu­pante, ges­tiona o ter­ri­tório, diz quem entra e sai, es­colhe quais is­ra­e­lenses, mesmo con­ta­mi­nados, podem en­trar em ter­ri­tório pa­les­tino etc. Is­rael diz que não, diz que é en­cargo da Au­to­ri­dade Pa­les­tina, ao passo que nega seu di­reito à so­be­rania, a go­verno pró­prio etc. Claro que não há res­paldo algum na le­gis­lação in­ter­na­ci­onal para esta ati­tude de Is­rael.

A certa al­tura, também diz que não tinha va­cina para os pa­les­tinos. Quando co­meçam a chegar va­cinas do­adas di­re­ta­mente aos pa­les­tinos, Is­rael co­meça a di­fi­cultar o de­sem­ba­raço adu­a­neiro. Ao per­mitir a en­trada das poucas doses do­adas (neste caso, pela Rússia), des­ti­nadas aos pro­fis­si­o­nais de saúde pa­les­tinos da linha de frente de com­bate à pan­demia, di­fi­culta sua li­be­ração. De­pois, di­fi­culta-se o trans­porte, como exem­pli­fica o blo­queio de 2 mil doses para pro­fis­si­o­nais de saúde em Gaza (do­adas pela Rússia, que doou também para a Cis­jor­dânia), que durou 48 horas e só foi re­sol­vido quando a co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal se mexeu. No en­tanto, agên­cias de no­tí­cias in­ter­na­ci­o­nais in­formam que este Es­tado (de Is­rael) des­cartou doses de va­cina que ven­ceram, en­quanto doou va­cinas para quatro países: Hon­duras, Re­pú­blica Tcheca, Gua­te­mala e Hon­duras, com a con­tra­par­tida de esses países re­co­nhe­cerem Je­ru­salém como ca­pital ex­clu­siva de Is­rael e mu­darem para lá suas em­bai­xadas. Em suma, poucas vezes na his­tória vimos qual­quer tipo de go­verno ser tão baixo. Isso tudo já foi um foco grande de des­con­ten­ta­mento.

Em se­tembro do ano pas­sado, num grande en­contro entre todas as forças po­lí­ticas pa­les­tinas, chegou-se a um acordo de re­con­ci­li­ação na­ci­onal e de con­vo­cação de elei­ções, para pos­si­vel­mente se cons­truir um go­verno de uni­dade na­ci­onal. De­li­berou-se que se co­or­de­na­riam todas as forças para uma re­sis­tência po­pular contra a ocu­pação is­ra­e­lense. Isso tudo ca­mi­nhou re­la­ti­va­mente bem, até o ponto de se con­vo­carem as elei­ções. Elei­ções le­gis­la­tivas para re­novar os 132 as­sentos em 22 de maio; elei­ções para a pre­si­dência em 31 de julho; e elei­ções para o Con­selho Na­ci­onal Pa­les­tino, que tem mais de 765 as­sentos, mas agora será re­du­zido para, se­gundo in­for­ma­ções, 350. O Con­selho é a prin­cipal ins­tância da OLP (Or­ga­ni­zação para a Li­ber­tação da Pa­les­tina), para a qual se elegem até re­pre­sen­tantes da diás­pora (se­riam 200 ca­deiras aos pa­les­tinos que vivem no ex­te­rior, perto de 7 mi­lhões, dos quais 6,2 mi­lhões nos países árabes, quase todos re­fu­gi­ados), in­clu­sive no Brasil.

Tal como nos acordos de Oslo, os re­si­dentes em Je­ru­salém também votam. Nas úl­timas elei­ções, 6000 vo­taram em Je­ru­salém pelo cor­reio e a maior parte em urnas de dis­tritos da ci­dade, or­ga­ni­zadas pela Au­to­ri­dade Na­ci­onal Pa­les­tina (ANP). Em 2006, es­tavam em con­di­ções de votar ao redor de 145.000 pa­les­tinos re­si­dentes em Je­ru­salém, dos quais perto de 119.000 se ca­das­traram. Nas elei­ções deste ano, Is­rael im­pediu os tra­ba­lhos da co­missão cen­tral elei­toral pa­les­tina em Je­ru­salém, im­pediu cam­panha dos can­di­datos das 37 listas e, au­to­ma­ti­ca­mente, im­pediu que hou­vesse vo­tação. E não é pos­sível re­a­lizar elei­ções na Pa­les­tina sem Je­ru­salém, pois isso sig­ni­fica que os pa­les­tinos es­ta­riam ce­dendo Je­ru­salém, abrindo mão da so­be­rania sobre a ci­dade, tal como pre­tende, pla­neja e age para tal o Es­tado is­ra­e­lense. Além disso, em Je­ru­salém Ori­ental e seus dis­tritos (ou su­búr­bios), vivem quase 470.000 mil pa­les­tinos, que se­riam des­car­tados en­quanto po­pu­lação pa­les­tina caso se acei­tasse re­a­lizar elei­ções abrindo mão de suas re­pre­sen­ta­ções, de re­a­li­zação de suas von­tades no seio da cons­trução do fu­turo da Pa­les­tina. Em vir­tude disso, as elei­ções le­gis­la­tivas de 22 de maio foram can­ce­ladas.

Cor­reio da Ci­da­dania: A pan­demia se tornou fer­ra­menta de inau­gu­ração de uma nova etapa de agressão e sa­bo­tagem à vida dos pa­les­tinos, por­tanto.

Ualid Rabah: De­pois, ainda te­ríamos mais três epi­só­dios. Em abril, co­meçou o mês sa­grado do Ra­madã, quando mais de 1,5 bi­lhão de mu­çul­manos je­juam todos os dias, do nascer ao por do sol. Is­rael blo­queou o portão de Da­masco, que dá acesso à Es­pla­nada das Mes­quitas, do que de­cor­reram grandes ma­ni­fes­ta­ções po­pu­lares re­pri­midas com muita vi­o­lência. De­pois de vá­rios dias de re­pressão, Is­rael re­abre este portão. Tudo ab­so­lu­ta­mente des­ne­ces­sário, a não ser que ima­gi­nemos aquilo que direi adi­ante.

No dia 2, os pa­les­tinos cris­tãos fa­ziam pro­cissão à Igreja do Santo Se­pulcro, a mais sa­grada do cris­ti­a­nismo, onde está o tú­mulo de Jesus Cristo, para uma ce­rimônia pascal, a ce­rimônia do fogo sa­grado. Foram vi­o­len­ta­mente ata­cados tanto por forças ofi­ciais (de ocu­pação) como co­lonos (es­tran­geiros de fé ju­daica, não raro recém-che­gados). A pro­cissão foi im­pe­dida, o acesso ao Santo Se­pulcro foi ve­tado e a ce­rimônia não ocorreu. Na úl­tima sexta-feira sa­grada do Ra­madã, em 7 de maio, co­lonos e ex­tre­mistas in­vadem a Es­pla­nada das Mes­quitas, além de ou­tras mes­quitas e igrejas, e co­meça uma série de de­pre­da­ções, tanto em Je­ru­salém como ad­ja­cên­cias. Há um con­fronto e as forças de ocu­pação en­tram em cena pra agredir os fieis pa­les­tinos. De­sata-se o caos e co­meçam grandes ma­ni­fes­ta­ções em Je­ru­salém, que acabam com outro in­gre­di­ente ex­plo­sivo.

Num bairro cha­mado Sheikh Jarrah (fica no Monte Scopus e leva esse nome porque ali está en­ter­rado Sheikh Jarrah, mé­dico de Sa­la­dino, li­ber­tador de Je­ru­salém do do­mínio cru­zado em 1187), lo­ca­li­zado no li­mite entre Je­ru­salém Ori­ental e Je­ru­salém Oci­dental, onde re­sidem muitas fa­mí­lias pa­les­tinas, mas em es­pe­cial 28 fa­mí­lias, que foram de­sa­lo­jadas por Is­rael no pro­cesso de lim­peza ét­nica ini­ciado em 1948, por­tanto, fa­mí­lias re­fu­gi­adas, que ali se ins­talam a partir de 1956. Sete dessas fa­mí­lias re­ce­beram ordem ju­di­cial is­ra­e­lense de des­pejo (três já des­pe­jadas) – o que por si só é ilegal, pois é proi­bido aplicar ju­ris­dição de po­tência ocu­pante sobre ter­ri­tório de po­pu­lação ocu­pada –, a pre­texto de que co­lonos – in­clu­sive vindo dos EUA – com­praram tais pro­pri­e­dades, apre­sen­tando seus tí­tulos sabe-se lá de onde e ob­tendo tí­tulo de pro­pri­e­dade por parte do Es­tado de Is­rael. Com isso, co­locam-se es­tran­geiros ju­deus nos lu­gares das fa­mí­lias pa­les­tinas. É um pro­cesso con­ti­nuado de lim­peza ét­nica. Pro­cesso pre­me­di­tado, cal­cu­lado, me­tó­dico de lim­peza ét­nica da Pa­les­tina, que se agu­diza em Je­ru­salém, no sen­tido de in­te­gra­li­zação da sua ju­dai­zação, que sig­ni­fica des­pa­les­ti­ni­zação, des­cris­ti­a­ni­zação e de­sis­la­mi­zação.

Este pro­cesso todo que levou ao con­junto de ati­vi­dades e ma­ni­fes­ta­ções de pro­testos, todos, res­salte-se, po­pu­lares e de­sar­mados, re­pri­midos bru­tal­mente por forças de ocu­pação au­xi­li­adas por grupos de ju­deus ex­tre­mistas. Esta é a mol­dura geral dos úl­timos acon­te­ci­mentos que, claro, estão numa mol­dura maior, que é a da lim­peza ét­nica da Pa­les­tina para sua in­te­gral to­mada.

Cor­reio da Ci­da­dania: Já que você falou do pro­cesso con­ti­nuado de lim­peza ét­nica, ou de “de­sa­ra­bi­zação”, como en­fa­tiza o his­to­ri­ador is­ra­e­lense Ilan Pappe em seu livro A Lim­peza Ét­nica da Pa­les­tina, in­clu­sive tendo como fonte para o termo os pró­prios diá­rios de David Ben Gu­rion, o que pensa das ale­ga­ções contra o Hamas? Afinal, não é uma des­culpa frouxa de­mais para evitar que se cumpra aquilo que foi de­li­neado em 1948 e re­for­çado em 1967, isto é, a Par­tilha da Pa­les­tina?

Ualid Rabah: É a des­culpa de sempre do co­lo­ni­a­lismo. Porque é di­ante disso que es­tamos: um pro­jeto co­lo­nial tardio pro­mo­vido por es­tran­geiros eu­ro­ju­deus na Pa­les­tina. Sempre foi ca­rac­te­rís­tica dos co­lo­ni­za­dores culpar as po­pu­la­ções co­lo­ni­zadas. O Nelson Man­dela era ter­ro­rista: 26 anos preso. Arafat era, idem, ter­ro­rista. A OLP era ter­ro­rista: mesmo tra­ta­mento.

O que Is­rael e si­o­nistas, apoi­a­dores e amigos pre­cisam dis­cutir é: há ou não há apartheid em Is­rael? Há ou não há ex­pe­ri­mentos ge­no­cidas? Há ou não há lim­peza ét­nica? Há ou não há seis mi­lhões de re­fu­gi­ados pa­les­tinos? São seis mi­lhões de ter­ro­ristas ex­pulsos a partir de 1948? O Hamas existia em 1897, quando o si­o­nismo re­solveu ini­ciar seu pro­jeto co­lo­nial na Pa­les­tina e que de­veria haver lim­peza ét­nica para seu “su­cesso”? E quando The­odor Herzl (fun­dador do si­o­nismo) disse na­quele mo­mento, no final do sé­culo 19, que a Pa­les­tina era “uma terra sem povo”, mesmo tendo 28,7 ha­bi­tantes por km², de acordo com senso bri­tâ­nico de 1922, época em que no Brasil a den­si­dade era in­fe­rior a 4 e a China, já o país mais po­pu­loso do mundo, tinha no má­ximo 40 ha­bi­tantes por km²? Existia Hamas ou OLP ou Arafat na época? Em 1948, quando re­a­lizam a lim­peza ét­nica da Pa­les­tina, exis­tiam Hamas, OLP, Arafat, Al Fatah? Em 1967, essas forças es­tavam no ter­reno? Em 1982, quando in­vadem o Lí­bano e pro­movem o ge­no­cídio de Sabra e Cha­tila, qual era o grupo “ter­ro­rista” que se com­batia?

O que Is­rael pre­cisa dis­cutir é outra coisa: não é Te­la­vive que está si­tiada e ata­cada. É a Faixa de Gaza. E, diga-se, quase 70% de sua po­pu­lação é re­fu­giada de 1948 e, em menor me­dida de 1967. É Gaza que está si­tiada, desde 2007, fre­quen­te­mente ata­cada por aviões e todo tipo de ar­ti­lharia. Os seis mi­lhões de re­fu­gi­ados pa­les­tinos são pa­les­tinos; não são is­ra­e­lenses, não são ju­deus. O que eles querem es­conder? Is­rael quer se eximir dos crimes de guerra e lesa-hu­ma­ni­dade que co­mete na Pa­les­tina e são in­ves­ti­gados pelo Tri­bunal Penal In­ter­na­ci­onal. Os re­la­tó­rios da B’Tselem, maior ONG de Di­reitos Hu­manos de Is­rael, e também da Human Rights Watch, dizem que há apartheid em todo o ter­reno da Pa­les­tina his­tó­rica. É ou não é ter­ro­rismo, in­clu­sive de Es­tado? É sobre isso que Is­rael pre­cisa falar.

Cor­reio da Ci­da­dania: E que pensa da re­tó­rica si­o­nista, que acusa de an­tis­se­mita, apa­ren­te­mente com cada vez mais frequência, qual­quer crí­tica aos atos do Es­tado de Is­rael? Di­ante dos ali­ados in­ter­na­ci­o­nais cada vez mais à di­reita, esse não é um ar­gu­mento um tanto frágil?

Ualid Rabah: Pri­mei­ra­mente, este ale­gado an­tis­se­mi­tismo trata de um fenô­meno criado por eu­ro­peus. Foi criado por eu­ro­peus, em solo eu­ropeu, por eu­ro­peus não ju­deus para cri­mi­na­lizar eu­ro­peus de fé ju­daica. Que, aliás, não são nem ja­mais serão se­mitas. É um termo equi­vo­cado cu­nhado na Eu­ropa para de­signar pes­soas de fé ju­daica (o termo, em sua com­pre­ensão ainda vi­gente, foi cu­nhado pelo jor­na­lista alemão Wi­lhelm Marr, em 1879/1880, e di­ri­gido para de­signar e cri­mi­na­lizar os pro­fes­santes do ju­daísmo na Eu­ropa, acu­sados de cul­tu­ral­mente “in­fe­ri­ores” aos ger­mâ­nicos e, até mesmo, de, com seu ale­gado atraso, pre­ju­di­carem o de­sen­vol­vi­mento da ci­vi­li­zação ariana “su­pe­rior”). Por­tanto, fa­lamos de an­ti­ju­daísmo cha­mado, a esta al­tura ins­tru­men­tal­mente, de an­tis­se­mi­tismo. Quanto a ser ou não ser se­mitas, nós é quem somos 100% se­mitas. Os árabes em geral são 100% se­mitas. Os ju­deus em es­ma­ga­dora mai­oria não são se­mitas, a não ser os árabes e pa­les­tinos de fé ju­daica.

O se­gundo ponto é que a luta por li­ber­tação, au­to­de­ter­mi­nação, por um Es­tado Na­ci­onal so­be­rano dos pa­les­tinos é a luta contra a ocu­pação, o apartheid, o pro­jeto co­lo­nial. Não é uma luta contra a fé ju­daica, o que seria an­ti­ju­daísmo, e, evi­den­te­mente, não é uma causa ra­cial, é uma causa de li­ber­tação na­ci­onal.

No en­tanto, é evi­dente que Is­rael se acos­tumou, pois os si­o­nistas per­deram toda a ca­pa­ci­dade de dig­ni­dade hu­mana, o ca­ráter e a de­cência, a usar esta moeda po­lí­tica, que é um achaque moral. Tudo que diz res­peito à con­de­nação do apartheid e aos crimes de guerra de Is­rael virou an­tis­se­mi­tismo. Porque eles não têm como se de­fender, não têm como negar os crimes. Assim, usam da chan­tagem re­tó­rica do an­tis­se­mi­tismo. Seria o mesmo que acusar de an­ti­branco quem de­nun­ciava o apartheid da África do Sul, de an­ti­ger­mâ­nico quem ata­casse a Ale­manha na­zista… É uma chan­tagem an­ti­ci­en­tí­fica e imoral.

Eles podem pro­curar an­tis­se­mi­tismo na­queles que os apoiam: na Hun­gria go­ver­nada pela ex­trema-di­reita; aqui no Brasil na ex­trema-di­reita quase na­zista, que são também en­rus­tidos an­ti­ju­deus, nos eu­ro­peus de ex­trema-di­reita, como a Ma­rine Le Pen, que pra­tica an­ti­ju­daísmo de­cla­rado, mas apoia Is­rael…

Por fim, eles que nos tragam in­for­ma­ções sobre o an­ti­ju­daísmo no amplo mundo árabe e is­lâ­mico até a fun­dação do Es­tado de Is­rael. Isso é um fenô­meno ex­clu­si­va­mente eu­ropeu (prin­ci­pal­mente oci­dental), “cristão” e branco, ocor­rido em lu­gares onde havia eu­ro­peus de fé ju­daica.

Pra com­pletar, é bom dizer que nada disso, isto é, o an­ti­ju­daísmo, es­taria ocor­rendo se não fossem os crimes de Is­rael. É Is­rael e sua con­duta que levam à res­sur­reição deste sen­ti­mento. Is­rael fez do ju­daísmo sua jus­ti­fi­ca­tiva de exis­tência e jus­ti­fi­ca­tiva para seus crimes, para sua ideia de su­pre­macia, para um re­gime de apartheid etc. É culpa de Is­rael o ale­gado – apesar da in­cor­reta de­fi­nição – “an­tis­se­mi­tismo”.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como vê a for­mação do novo go­verno após fra­casso da co­a­lizão de Bibi Ne­tanyahu com o ge­neral Benny Gantz? O que es­perar dessa tênue mai­oria e como deve in­fluir na re­lação com a causa da in­de­pen­dência pa­les­tina?

Ualid Rabah: Existe uma es­pe­rança quase mi­to­ló­gica de que, a partir do que as elites is­ra­e­lenses re­sol­verem, al­guma coisa boa pode acon­tecer no mundo, es­pe­ci­al­mente na Pa­les­tina. Assim, me pa­rece, grosso modo, que quase es­que­cemos de fazer uma aná­lise his­tó­rica. Hoje, o dis­curso si­o­nista e de parte dos apoi­a­dores de Is­rael, en­ver­go­nhados ou não, é de que Is­rael não é o pro­blema, mas sim Ne­tanyahu. O pro­blema seria de uma ex­trema-di­reita que go­verna o país e atra­palha tudo. Fora que ha­veria ex­tre­mistas pa­les­tinos, que igua­la­riam tudo e fim de papo.

Pri­mei­ra­mente, foi a es­querda is­ra­e­lense que pro­moveu a lim­peza ét­nica da Pa­les­tina. Ben Gu­rion era de es­querda e se au­to­pro­cla­mava so­ci­a­lista. Todos os ki­butzim na Pa­les­tina, inau­gu­rados a pre­texto de um ro­man­tismo so­ci­a­lista, se ser­viram da lim­peza ét­nica. Não há um ki­butz que não tenha sido feito em cima do pro­cesso co­lo­nial. A di­reita is­ra­e­lense só chegou ao poder em 1977, com Me­na­chem Be­guin, jus­ta­mente com o Likud, na época uma co­li­gação, hoje um par­tido, pelo qual se ele­geria Ne­tanyahu. Daí em di­ante, es­querda e di­reita se re­ve­zaram, sem que ne­nhuma delas tenha avan­çado para além dos Acordos de Oslo, en­quanto as­si­na­tura dos prin­cí­pios, de 1993, fir­mado, pelo lado is­ra­e­lense, por Yitzhak Rabin, por sinal as­sas­si­nado logo de­pois (4 de no­vembro de 1995, em Te­la­vive) pelos pró­prios is­ra­e­lenses.

Nesse mo­mento, fa­lamos da nova ten­ta­tiva, ar­ti­cu­lação, de uma nova ali­ança. O par­tido do Yair Lapid (Yesh Atid) tem 17 ca­deiras, é tido como de centro, mas é a favor da co­lo­ni­zação da Pa­les­tina e nunca disse um ‘a’ em favor dos acordos. Outro líder do mo­mento, Naf­tali Bennet, do Nova Di­reita, com 7 mem­bros, se opõe aber­ta­mente à im­ple­men­tação do Es­tado da Pa­les­tina, de­fende a co­lo­ni­zação; mi­li­ta­rista e apoiado pela ex­trema-di­reita, in­clu­sive se van­glo­ri­ando de estar à di­reita de Ne­tanyahu. E foi ele quem con­se­guiu agora a ca­deira de pri­meiro mi­nistro, na qual es­tará pelos pró­ximos dois anos. É cu­rioso neste caso que ele também é imi­grante, seus pais vi­eram dos EUA e é es­tran­geiro, como todos eles pra­ti­ca­mente. Foi pre­si­dente da as­so­ci­ação de co­lonos ju­deus na Cis­jor­dânia (Con­selho de Yesha, que in­clu­sive de­fende a ex­pulsão de todos os pa­les­tinos da Cis­jor­dânia e sua ane­xação) e sempre disse que, em sua po­lí­tica, não ce­deria “um só cen­tí­metro de terra aos pa­les­tinos”. Esses são os dois grandes ho­mens da co­li­gação. Enfim, são os ar­ranjos in­ternos is­ra­e­lenses.

O que pode acon­tecer, e que talvez a pressão in­ter­na­ci­onal sig­ni­fique em re­lação a Ne­tanyahu, é in­cóg­nita ainda. O quanto, prin­ci­pal­mente em re­lação aos EUA, isso aju­dará nas ne­go­ci­a­ções é uma in­cóg­nita. A saída de Ne­tanyahu não sig­ni­fica que da noite para o dia a si­tu­ação me­lhore. É a re­sis­tência pa­les­tina, sua busca por uni­dade in­terna e a pressão in­ter­na­ci­onal sobre Is­rael que podem re­sultar em al­guma saída para a Pa­les­tina.

Cor­reio da Ci­da­dania: Ainda é pos­sível sus­tentar que Is­rael no fundo não vise à des­truição de­fi­ni­tiva da pos­si­bi­li­dade dos dois Es­tados através da cri­ação do fato con­su­mado? Não é a única aná­lise séria a ser feita sobre sua po­sição?

Ualid Rabah: Há in­di­ca­ções bem claras disso. Do início dos anos 90, até dos anos 80, pra cá, senão de 1967 ou 1973 (cha­madas, res­pec­ti­va­mente, Guerra dos Seis Dias e Guerra do Yom Kippur) temos a menor pro­porção do cha­mado “campo da paz” em Is­rael. Hoje ele é muito pe­queno. Isso não quer dizer que não possa mudar e voltar a crescer, não quer dizer que o ci­dadão médio não canse de estar a ser­viço de um re­gime opres­sivo, co­lo­nial, de lim­peza ét­nica. Não quer dizer que daqui a pouco não venha a dizer ‘não’ para este pro­cesso ge­no­cida. Mas agora, in­fe­liz­mente, o campo da paz em Is­rael é mí­nimo. Pode crescer, as pres­sões in­ter­na­ci­o­nais podem mudar. Até os ex­tre­mistas ju­deus, que hoje pre­do­minam na ma­ni­fes­tação pú­blica da von­tade is­ra­e­lense, podem vir a ser obri­gados a uma re­flexão.

Foi a pressão in­ter­na­ci­onal que levou o apartheid a acabar na África do Sul. Não foi a von­tade tran­quila dos bôeres, do Fre­de­rick de Klerk ou Pi­eter Botha. É pos­sível que isso acon­teça na Pa­les­tina. Não será de pre­sente das elites que atu­al­mente formam o go­verno de co­a­lizão de Is­rael.

Cor­reio da Ci­da­dania: Grosso modo, Is­rael é um Es­tado se­cular fun­dado sobre bases re­li­gi­osas. Dessa forma, o ho­ri­zonte his­tó­rico do au­to­de­cla­rado “Es­tado judeu” pode es­capar do ra­cismo, do sec­ta­rismo, fun­da­men­ta­lismo etc.?

Ualid Rabah: O grande pro­blema é que no nas­ci­mento do si­o­nismo, quando co­meça a tomar ca­rac­te­rís­ticas de mo­vi­mento na­ci­onal entre eu­ro­peus de fé ju­daica, ima­gina-se a hi­pó­tese de cons­truir um Es­tado Na­ci­onal judeu. Mas não havia como con­se­guir isso na Eu­ropa. O jeito era buscar “fora”. Entre aspas porque tinha de estar aco­plado a um pro­jeto co­lo­nial eu­ropeu da­quele mo­mento, de al­guma po­tência co­lo­nial eu­ro­peia de então. Por volta de 1907 a In­gla­terra já ima­gina um Es­tado tampão na Pa­les­tina para con­trolar o Ori­ente Médio e o pe­tróleo. É uma área re­la­ti­va­mente plana, que per­mi­tiria à in­fan­taria bri­tâ­nica já es­ta­ci­o­nada ou tra­zida por seus na­vios ir di­reto ao Golfo Pér­sico para pre­servar seu pe­tróleo, sem pre­cisar passar por Suez, en­trar no Mar Ará­bico etc.

Ter­mi­nada a Pri­meira Guerra Mun­dial, há o acordo se­creto entre fran­ceses e in­gleses (acordo Sykes-Picot) e há a par­tilha dos des­pojos do Im­pério Oto­mano, um dos der­ro­tados da Pri­meira Guerra. O es­torvo Oto­mano já não es­tava ali. Em 1917, os bri­tâ­nicos pro­metem esta terra, que não era sua, aos ju­deus eu­ro­peus. Faz-se a De­cla­ração Bal­four, en­de­re­çada ao ban­queiro in­glês judeu Walter Roths­child, li­de­rança da co­mu­ni­dade ju­daica no Reino Unido e si­o­nista. Era uma de­cla­ração, fun­da­mental, de 67 pa­la­vras, que dizia: “O Go­verno de Sua Ma­jes­tade vê com fa­vo­re­ci­mento o es­ta­be­le­ci­mento na Pa­les­tina de um lar na­ci­onal para o povo judeu e usará seu me­lhor es­forço para fa­ci­litar a re­a­li­zação deste ob­je­tivo, fi­cando cla­ra­mente en­ten­dido que nada será feito o qual possa pre­ju­dicar os di­reitos civil e re­li­gioso das co­mu­ni­dades não-ju­dias exis­tentes na Pa­les­tina”). Fica claro que di­reitos na­ci­o­nais se­riam apenas ju­deus. Isto é, um pro­jeto ra­cista, de su­pre­macia de al­guma ordem, neste caso de­fi­nida pela fé re­li­giosa. É assim que se re­a­liza o pro­jeto.

En­tre­tanto, a mesma de­cla­ração deixa claro que não seria per­mi­tida lim­peza ét­nica. Diz que se­riam “pre­ser­vados os di­reitos re­li­gi­osos e civis da­quelas po­pu­la­ções” (que nada será feito o qual possa pre­ju­dicar os di­reitos civil e re­li­gioso das co­mu­ni­dades não-ju­dias exis­tentes na Pa­les­tina”). Pode ser apenas tex­tual, mas se a de­cla­ração, a partir de 1922-23, foi trans­for­mada pela an­tiga Liga das Na­ções em um dos do­cu­mentos ofi­ciais do man­dato do pro­te­to­rado bri­tâ­nico sobre a Pa­les­tina, quer dizer se tratar de um do­cu­mento de di­reito in­ter­na­ci­onal, por mais que trate de di­reitos do opressor, co­lo­nial. Por­tanto, pode ser nulo de pleno di­reito, pois anula ou­tros di­reitos ao criar pre­ten­sa­mente um novo por cima do an­te­rior. Mas fun­da­men­tal­mente era isso: re­cu­sava a des­po­vo­ação da Pa­les­tina.

Is­rael re­a­liza este pro­cesso todo a partir da le­gi­ti­mação da Re­so­lução 181. Diz que a Pa­les­tina será par­ti­lhada para um fu­turo Es­tado judeu (já co­meça er­rado) e um fu­turo Es­tado que eles chamam de árabe, que é a Pa­les­tina, re­par­tindo o ter­ri­tório. A re­so­lução apenas re­co­menda a par­tilha, não cria status; 42,9% da Pa­les­tina His­tó­rica para os pa­les­tinos, que na­quela al­tura eram “até 75%” de não ju­deus no ter­ri­tório. Por que “até 75%”? Porque os bri­tâ­nicos não con­tavam os be­duínos. Além do mais, in­clu­sive com estes (be­duínos), ti­nham os pa­les­tinos até 95% do ter­ri­tório. Ao fu­turo Es­tado judeu, 56,5%, mesmo re­pre­sen­tando no má­ximo 30% da po­pu­lação, com cerca de 5% das terras. Os res­tantes 0,6% se­riam ter­ri­tório in­ter­na­ci­onal, Je­ru­salém ba­si­ca­mente, ad­mi­nis­trado pela ONU, com seus lo­cais sa­grados etc.

A re­so­lução 181 nunca seria im­ple­men­tada, in­clu­sive é sus­pensa de de­zembro de 1947 em di­ante, porque a co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal e os países que fa­ziam a recém-for­mada ONU re­cebem re­la­tó­rios se­cretos sobre grupos ter­ro­ristas ju­daicos, com­postos de eu­ro­peus que ti­nham che­gado a partir de 1945, que co­me­çavam a atacar grupos de pa­les­tinos e po­pu­la­ções cam­po­nesas, com o fim de de­sa­lojá-las. Por este mo­tivo, a re­so­lução não é im­ple­men­tada.

Em 9 de abril de 1948, essas forças si­o­nistas fazem, no que era uma pe­quena lo­ca­li­dade a 5km de Je­ru­salém hoje oci­dental, um ataque de grupos no qual até 300 ha­bi­tantes de 700 ali re­si­dentes são as­sas­si­nados. Ali co­meça o Plano Dalet (um dos vá­rios planos de ocu­pação da Pa­les­tina His­tó­rica, do­cu­men­tados pelo pró­prio Es­tado is­ra­e­lense), que con­sistia na má­xima to­mada de ter­ri­tório com o mí­nimo de per­ma­nência de pa­les­tinos.

Este pro­cesso é mas­si­va­mente ini­ciado às 16 horas de 14 de maio de 1948, quando Is­rael se au­to­pro­clama Es­tado. À meia noite do mesmo dia ter­mi­nava o man­dato de pro­te­to­rado ou­tor­gado aos bri­tâ­nicos pela an­tiga Liga das Na­ções. No dia se­guinte co­meça a lim­peza ét­nica em grande es­cala. De 15 de maio em di­ante, são in­va­didas 771 lo­ca­li­dades pa­les­tinas, das quais 531 são eli­mi­nadas e to­tal­mente to­madas. Da noite para o dia mais de 60% da po­pu­lação pa­les­tina é ex­pulsa, 15 mil são mortos ao longo de 70 mas­sa­cres. O au­to­pro­cla­mado Is­rael toma 76% da Pa­les­tina his­tó­rica, área dentro da qual mais de 80% da po­pu­lação é ex­pulsa, algo em torno de 750 mil pa­les­tinos, daí re­sul­tando os atuais 6 mi­lhões de re­fu­gi­ados.

Is­rael alega que tudo que se deu na Pa­les­tina de­correu do ataque que so­freu a partir do mo­mento em que se au­to­de­clarou Es­tado, em 14 e 15 de maio de 1948. Men­tira! Os con­frontos, de fato, só se dão a partir de 26 de maio de 1948, isto é, de­pois de ini­ciada a lim­peza ét­nica, cujos pri­meiros ele­mentos se deram em de­zembro de 1947. De­pois há o teste em 9 de abril de 1948 (Deir Yassin) e, fi­nal­mente, a lim­peza ét­nica em grande es­cala, a partir de 15 de maio de 1948. Logo, quando muito, o que teria ha­vido foi uma ten­ta­tiva e re­ação aos crimes de Is­rael contra a po­pu­lação pa­les­tina ori­gi­nária. Ainda neste sen­tido, cabe der­rubar a lenda de que o “pe­queno” Is­rael en­frentou todos os “exér­citos” árabes. O que houve foram apenas forças ir­re­gu­lares e vo­lun­tá­rias de seis países, sem avi­ação (Is­rael já tinha), que ini­ci­aram com 29.100 ho­mens e che­garam a ter o má­ximo de 50.500 ho­mens. Mais um de­talhe: seu má­ximo co­man­dante foi o in­glês John Bagot Glubb. Já do lado is­ra­e­lense foram forças uni­fi­cadas e já or­ga­ni­zadas como exér­cito, que co­meçou com 29.677 ho­mens e chegou ao teto de 117.500 ho­mens. Ou seja: mais um gros­seiro mito.

As ques­tões são: a re­so­lução 181 mandou al­terar a de­mo­grafia da Pa­les­tina? Mandou eli­minar 531 lo­ca­li­dades? Mandou ex­pulsar até 85% da po­pu­lação pa­les­tina do au­to­pro­cla­mado Es­tado de Is­rael? Tudo isso faz de Is­rael um Es­tado ilegal. O en­viado da ONU, o conde sueco Folke Ber­na­dotte, ve­ri­fica que Is­rael mentia sobre o aban­dono do povo pa­les­tino a pe­dido de li­de­ranças árabes. São re­fu­gi­ados exi­lados, ex­pulsos de di­versas ci­dades. Ele pega os tes­te­mu­nhos e faz um re­lato. Logo, ele é as­sas­si­nado por bandos ter­ro­ristas ju­daicos (17 de se­tembro de 1948, na parte oci­dental de Je­ru­salém), co­man­dados por Yitzhak Shamir (com Natan Yellin-Mor, Yis­rael Eldad), que viria a ser pri­meiro mi­nistro de Is­rael (1986/1992). Esses re­la­tó­rios se­cretos e o de Ber­nar­dotte re­sultam na re­so­lução 194, de de­zembro de 1948, que de­ter­mina o re­torno dos re­fu­gi­ados pa­les­tinos e a re­pa­ração de suas perdas.

Em 1949 (11 de maio), apenas, Is­rael é ad­mi­tido como Es­tado-membro da ONU, sob cláu­sula con­di­ci­o­nante (único caso até hoje), que trata do aca­ta­mento da re­so­lução 194. Mas não é só isso. Is­rael se au­to­pro­clama Es­tado à base da lim­peza ét­nica e da apro­pri­ação de tudo que era pa­les­tino: es­colas, es­tradas, bancos, terras pro­du­tivas, oli­vais, cri­a­ções de ca­bras, ove­lhas, ovinos, in­dús­trias, in­fra­es­tru­turas. Tudo. O PIB pa­les­tino foi apro­priado da noite para o dia. À luz da re­so­lução 181 tudo isso é ilegal.

Con­se­quen­te­mente, Is­rael não é ilegal apenas pela sua imo­ra­li­dade, pela lim­peza ét­nica, pelo crime de ge­no­cídio, pelo apartheid. É pária sob qual­quer viés ima­gi­nado, in­clu­sive pela de­cla­ração Bal­four, que é ado­tada como tí­tulo legal pela an­tiga Liga das Na­ções e é clara sobre a pre­ser­vação da po­pu­lação já es­ta­be­le­cida.

Por fim, se tudo é ima­gi­nado como “Es­tado judeu”, como tudo po­deria ser di­fe­rente do que es­tamos vendo? O Es­tado con­ce­bido por David Ben Gu­rion só podia ser um Es­tado Nação judeu com pu­reza ét­nica. Por isso re­a­liza-se a lim­peza ét­nica, para que na pior das hi­pó­teses (ao pro­jeto si­o­nista) fique uma mai­oria es­ma­ga­dora ju­daica.

É isso que entra em vigor em 2018 com a apro­vação da Lei do Es­tado-nação Judeu, a partir da qual apenas o judeu é ci­dadão pleno e o he­braico é a língua na­ci­onal única. So­mente a even­tual con­versão dos pa­les­tinos ao ju­daísmo po­derá levá-los à con­dição de me­re­ce­dores de per­ma­necer na terra.

Nada po­deria ser di­fe­rente, por­tanto.

Cor­reio da Ci­da­dania: Dessa forma, acre­dita que o Es­tado de Is­rael es­teja des­cre­vendo uma tra­je­tória au­to­fá­gica?

Ualid Rabah: Ironia do des­tino, po­demos atri­buir duas grandes obras a Is­rael: 1) a Pa­les­tina é o maior campo de con­cen­tração ja­mais ima­gi­nado, ad­mi­nis­trado por ju­deus; 2) Is­rael é o maior gueto do mundo, criado pelo si­o­nismo para os ju­deus. Ironia ou não, é isso.

É viável? Acho que não. O que mais posso dizer? Posso dizer que, a não ser que acre­di­temos que um Es­tado de apartheid seja viável, Is­rael não é viável. A não ser que um Es­tado de su­pre­ma­cismo seja viável, Is­rael não o é.

Is­rael só fez a guerra de agressão de 1967, tal como em 1948, porque não con­se­guira tomar toda a Pa­les­tina. Mas neste caso (1967) não con­se­guiu ex­pulsar pra­ti­ca­mente nin­guém. O plano era tomar tudo, in­clu­sive Gaza e Cis­jor­dânia, e já na­quele mo­mento des­po­voar a es­ma­ga­dora mai­oria. Como só con­se­guiram des­po­voar 76%, e grande parte deste per­cen­tual é de po­pu­lação re­fu­giada dentro da Pa­les­tina his­tó­rica (em Gaza cerca de 70% são re­fu­gi­ados, en­quanto de 23% a 25% na Cis­jor­dânia, e o resto ba­si­ca­mente está nas fron­teiras, como Lí­bano, Síria e Jor­dânia), há hoje um nú­mero igual de ju­deus e não ju­deus em toda a Pa­les­tina (censo re­cente di­vul­gado pelo Es­cri­tório Cen­tral de Es­ta­tís­ticas da Pa­les­tina já in­forma que a po­pu­lação não ju­daica é 200.000 mil maior do que a ju­daica). Isso quer dizer que, para se tornar uma mai­oria ju­daica (“do rio Jordão ao mar, do Sinai à Ga­li­leia”) seria ne­ces­sária uma nova lim­peza ét­nica. Ou a ad­missão da co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal e da cons­ci­ência hu­mana de que um re­gime ge­nui­na­mente de apartheid é le­gí­timo, con­forme o país (Is­rael) de­finiu em 2018.

Se tudo isso for ad­mi­tido, sig­ni­fica que o Di­reito In­ter­na­ci­onal tor­nará legal o apartheid, o ge­no­cídio, a lim­peza ét­nica e a to­mada de ter­ri­tório pela força, com a cons­trução de Es­tados Na­ci­o­nais que ex­pulsem po­pu­lação mi­lenar em favor de es­tran­geiros que ja­mais pi­saram ali. Te­remos, por­tanto, uma nova fór­mula de cons­trução de Es­tados Nação.

É isso que a co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal de­seja? Se a tudo isso a res­posta for não, é evi­dente que Is­rael é in­viável, imoral e ilegal.

Cor­reio da Ci­da­dania: Quais os pontos fun­da­men­tais para uma so­lução justa?

Ualid Rabah: É um con­flito muito re­cente, faz parte da his­tória co­lo­nial eu­ro­peia tardia. Não tem nada a ver com bí­blia, Roma, egíp­cios e ca­na­neus. É de poucas dé­cadas e re­sulta de tudo que fa­lamos aqui.

Por­tanto, os pontos cen­trais são: cessar a ocu­pação da Pa­les­tina; o di­reito de re­torno dos re­fu­gi­ados deve ser res­pei­tado; deve-se per­mitir a re­a­li­zação do Es­tado Na­ci­onal pa­les­tino; deve haver pro­teção in­ter­na­ci­onal à po­pu­lação pa­les­tina; deve haver so­be­rania pa­les­tina sobre Je­ru­salém; os pa­les­tinos devem ter di­reito de guarda de suas fron­teiras; os pa­les­tinos devem ter di­reito de ir e vir; e deve acabar o re­gime de apartheid.

Feito isso, re­solve-se a questão pa­les­tina. E, mais que isso, os is­ra­e­lenses passam a ter a pos­si­bi­li­dade de viver um es­tado que não seja de guerra e ocu­pação per­ma­nente, que exige pro­ta­go­nismo de toda uma po­pu­lação num pro­cesso de ge­no­cídio. Só com uma paz justa ha­verá paz du­ra­doura. Aliás, al­guma paz.

Eu diria que a pressão in­ter­na­ci­onal é muito im­por­tante, de países, go­vernos, ins­ti­tui­ções, Es­tados, or­ga­ni­za­ções in­ter­na­ci­o­nais. Se pos­sível, pressão da so­ci­e­dade civil como em re­lação ao apartheid da África do Sul. E se pos­sível, a pro­moção do mo­vi­mento global BDS (Boi­cote, De­sin­ves­ti­mento e San­ções). Deu certo na África do Sul, pode dar certo na Pa­les­tina. Que as pes­soas não deixem de ex­pressar a so­li­da­ri­e­dade com a Pa­les­tina, nas redes so­ciais e onde quer que seja.

E vi­sitem a Pa­les­tina. Lá, po­derão ver o que é apartheid e ocu­pação in loco. Não são pa­la­vras. São si­tu­a­ções reais. Co­nhe­cerão um país muito belo, que tem uma das me­lhores cu­li­ná­rias (por sinal, ba­rata) e re­cep­ti­vi­dade do mundo. O país é um grande sítio ar­que­o­ló­gico, um museu a céu aberto em quase todo o ter­ri­tório, onde se en­contra tudo que diz res­peito ao nas­ci­mento da his­tória hu­mana e do mo­no­teísmo.

Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

Fonte: Correio da Cidadania

Share Button

Deixar um comentário

  

  

  

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.