A diplomacia assertiva da Síria pós-Assad e o colapso do sistema prisional do Líbano convergem em um confronto de alto risco envolvendo mais de 2.000 detentos sírios com uma bagagem política explosiva.
Mohamad Shamse Eddine
23 DE JULHO DE 2025

Crédito da foto: The Cradle
Uma tempestade política está se formando em torno de uma crise persistente nas prisões do Líbano: mais de 2.000 sírios, muitos detidos sem acusação ou julgamento, permanecem presos em instalações superlotadas e em ruínas.
A piora das condições humanitárias não é mais apenas uma questão doméstica. Transformou-se em um potente ponto de tensão diplomática entre Beirute e o novo governo interino em Damasco, com este último sinalizando que não tolerará mais atrasos na resolução da situação de seus cidadãos.
A faísca veio de uma reportagem da TV Síria citando um funcionário do governo do presidente interino Ahmad al-Sharaa (Abu Muhammad al-Julani), que afirmou que Damasco está “considerando opções de escalada gradual contra o Líbano”, começando pelo congelamento de alguns canais de segurança e econômicos caso a questão dos detentos permaneça sem solução.
Seguiram-se desmentidos oficiais, mas a mensagem já havia chegado a Beirute. O arquivo dos prisioneiros, adormecido há anos, está agora totalmente aberto — e carregado de implicações políticas que se estendem muito além das grades da Prisão de Roumieh, no Líbano.
Isso ocorre em um momento em que o judiciário libanês está à beira do colapso e suas prisões à beira da crise. Ao mesmo tempo, um Estado sírio transformado sob a administração de Sharaa, enraizado na Al-Qaeda, está recalibrando sua posição regional após anos de guerra civil, isolamento ocidental e lutas para afirmar sua soberania.
Damasco enquadra a questão dos detentos como humanitária. No entanto, observadores políticos em Beirute veem isso como uma alavanca estratégica, parte de um jogo de poder mais amplo que se desenrola em um momento em que o Líbano enfrenta divisões internas e competição entre a Turquia e a Arábia Saudita por influência dentro de sua comunidade sunita.
Os detidos também representam mais do que casos individuais — eles são um legado da ordem síria anterior e um teste para a capacidade do Líbano de lidar com os custos políticos de sua disfunção judicial.
Quem são os detidos?
Os prisioneiros sírios no Líbano se dividem em três categorias. Primeiro, os detidos políticos: sírios presos na última década por se juntarem a facções militantes como o Exército Livre da Síria (ELS) ou a Frente Nusra, considerada terrorista pela ONU, ou por se manifestarem contra o antigo governo sírio.
A maioria nunca foi formalmente acusada. Agora, com a saída do ex-presidente sírio Bashar al-Assad e um novo governo em Damasco, esses indivíduos estão sendo reformulados não como inimigos, mas como participantes de uma causa nacional. Seu retorno está sendo enquadrado por Damasco como parte do processo de reconciliação interna da Síria.
Em segundo lugar, estão os detidos ligados a jihadistas. Esses prisioneiros são acusados de ligações com grupos terroristas como o ISIS ou a Al-Qaeda. Alguns foram julgados, mas muitos continuam detidos sem veredictos. As definições legais de terrorismo variam significativamente entre Beirute e Damasco, complicando qualquer tratamento jurídico coordenado.
A falta de provas em muitos casos levantou questões sobre a justiça de detenções prolongadas, especialmente na ausência de padrões legais transparentes ou supervisão internacional.
Em terceiro lugar, estão os criminosos: sírios acusados de crimes rotineiros, como roubo ou contrabando. Em teoria, eles se enquadram no sistema legal libanês como qualquer estrangeiro. Na prática, um judiciário falido e uma burocracia kafkiana deixaram muitos em um limbo jurídico, detidos por anos sem resolução.
O que une os três grupos é a incapacidade do Líbano de classificar ou processar seus casos adequadamente. Sem acesso a advogados, intérpretes ou apoio diplomático, a maioria dos detidos sírios fica efetivamente sem voz e invisível. Segundo advogados, alguns esperaram até sete anos por uma única audiência judicial.
Demandas extrajudiciais de Damasco
Os nomes solicitados por Damasco incluem figuras profundamente ligadas à violência do passado em solo libanês. O pregador salafista Sheikh Ahmad al-Assir, condenado em conexão com os confrontos de Abra em 2013, que deixaram vários soldados do exército libanês mortos, está entre eles. Seu caso está encerrado sob a lei libanesa, portanto, sua inclusão sinaliza cálculo político, não necessidade legal.
Também na lista estão Sheikh Omar al-Atrash e Naeem Abbas, ambos ligados às operações da Al-Qaeda no Líbano e implicados nos atentados de 2013 em Dahieh, subúrbio ao sul de Beirute. Suas condenações são firmes. Sua extradição, se tentada, desencadearia uma tempestade política.
Damasco não busca o retorno de pequenos criminosos. Visa influenciar o que considera atores políticos ligados ao conflito sírio — indivíduos que agora considera parte de sua narrativa nacional. Beirute, no entanto, vê potencial manipulação.
Fontes sírias informam ao The Cradle que quaisquer retornados passarão por um processo formal de segurança e supervisão judicial. Mas as famílias das vítimas temem que os acordos possam servir a interesses regionais, não à justiça. O judiciário libanês, sem independência e sobrecarregado por anos de interferência estrangeira e sectária, oferece pouca confiança pública.
Roumieh: Uma prisão à beira do precipício
A Prisão de Roumieh foi construída para abrigar 1.500 detentos. Atualmente, abriga mais de 4.000, incluindo centenas de sírios. Muitos foram detidos sem acusação formal. As condições na ala islâmica, “Bloco B”, são terríveis — superlotadas, insalubres e privadas de cuidados médicos e psicológicos básicos.
Em fevereiro, mais de 100 detentos sírios iniciaram uma greve de fome de duas semanas. O protesto ocorreu após meses de inação em relação às reformas prometidas, incluindo a melhoria do acesso à justiça e das condições prisionais. Autoridades de segurança reconhecem o risco de que a agitação possa se transformar em uma revolta generalizada, especialmente porque atores externos veem a crise prisional como uma oportunidade para incitar a instabilidade. Fontes de segurança libanesas alertam que grupos militantes podem explorar as queixas dentro de Roumieh, transformando um centro de detenção em um foco de conflito mais amplo.
Sem arquitetura jurídica
Apesar da gravidade da questão, não existe um tratado formal de troca de prisioneiros entre o Líbano e a Síria. Um acordo de extradição mais antigo permanece no papel, mas não abrange prisioneiros condenados. A lei libanesa proíbe a deportação, a menos que o detido tenha recebido um veredito final — e mesmo assim, não para crimes cometidos em solo libanês com vítimas libanesas.
Essa zona cinzenta jurídica explica por que detidos como Abbas e Atrash permanecem no Líbano, pelo menos por enquanto. No entanto, um novo acordo judicial está sendo negociado entre os ministérios da Justiça em Beirute e Damasco, que pode permitir a repatriação de 370 sírios condenados.
Fontes judiciais libanesas informaram ao The Cradle que o rascunho do acordo inclui disposições para a continuação da pena e monitoramento pós-transferência, mas enfrenta oposição política de facções alinhadas aos interesses ocidentais.
Enquanto Damasco exige a volta de seus cidadãos, o Líbano mantém silêncio sobre seus cidadãos presos nos campos de detenção administrados pelas Forças Democráticas Sírias (FDS), lideradas pelos curdos, no nordeste da Síria. Centenas de cidadãos libaneses — muitos detidos junto com suas famílias — definham ali sem julgamento, sem acesso consular e sem apoio oficial. Alguns estão presos desde 2019, capturados durante as batalhas finais contra o ISIS.
Esse silêncio expõe a disfunção mais profunda do Líbano. Suas instituições estão muito erodidas para defender seus próprios cidadãos, quanto mais para negociar um acordo recíproco com um Estado frágil como a Síria, que agora fala a partir de uma posição de renovada assertividade regional. A contradição é gritante: espera-se que Beirute processe os casos sírios com cuidado, ignorando seus cidadãos presos em zonas de detenção apoiadas pelos EUA sob as FDS.
Um acordo é possível?
Fontes políticas de alto escalão disseram ao The Cradle que Beirute pode começar pela libertação de detentos sem bagagem política, preparando o terreno para um acordo mais amplo. Isso permitiria que ambos os estados testassem as águas, evitando controvérsias imediatas. Algumas autoridades libanesas argumentam que essa abordagem gradual também poderia reduzir a superlotação em prisões como Roumieh, ao mesmo tempo em que atenderia às expectativas mínimas da Síria.
Mas qualquer resolução duradoura exige mais do que medidas táticas. Exige uma revisão abrangente da arquitetura judicial do Líbano, a despolitização de suas políticas de detenção e uma estrutura bilateral vinculativa. Damasco, por sua vez, terá que oferecer garantias claras de que os detentos repatriados não serão usados para acertos de contas antigas, mas sim reintegrados a um sistema legal que reflita sua nova realidade política.
Até lá, as prisões do Líbano permanecerão superlotadas, o judiciário paralisado e o caso dos detidos sírios sem solução — expondo o acerto de contas inacabado entre dois Estados ainda atolados nos legados de ocupação, guerra e dependência política.
As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente as do Oriente Mídia
Fonte: The Cradle