
Noite alta. Ruído de chave na fechadura. Porta se abrindo. Porta fechada com estardalhaço. Passos ressoando fortemente no piso. Porta do quarto chutada com fúria. Susto do cachorro e de sua dona. O cachorro pula. A dona dele não se mexe. Finge dormir. Quer evitar o pior. Mas o pior já a agarra pelos cabelos e a joga no chão. Chutes, muitos chutes. Gritos, muitos gritos. Pare com isto! O que foi que eu fiz? Pergunta inútil. Toda aquela violência decorre da descarga incontida de ódio ao feminino, saída da densa, obscura e interminável noite de que é feita a vida dele. Naquela casa, também, nada se ilumina. A escuridão parece dominar e transformar tudo em sombra: as mentes, os corações, as almas. Almas penadas?! O que poderia ser feito? Reagir seria a solução? Não tem força para tanto. A discriminação física, sexual e psicológica a faz refém. Uma refém aprisionada ao desvario insano e misógino do marido. Seu desprezo e aversão às mulheres concentrou-se e cravou-se nela. O chão vai se encharcando de lágrimas amargas. Tempo de vã esperança: passos para fora do quarto. Quem sabe ele se esparrame pelo sofá e a deixe para lá. Engano. Passos rápidos de volta ao quarto. Levantada do chão à força pelos cabelos. Faca da cozinha na mão. A maior faca da cozinha. Uma, duas, três, dez, dezoito, vinte e sete estocadas. O cachorro já não late. Uiva tristemente junto ao corpo. Quer que a sua dona fale, grite, brigue com ele. Qualquer alternativa é válida. Desde que ela emita um som. Um único som. E nada. Não se mexe. Apenas jaz prostrada no chão. Com sangue se esparramando por todo lado. Apenas o sangue se movimenta escorrendo pelo quarto. O cachorro cheira o sangue. Mas não o lambe. Apenas uiva num lamento sem fim. Guerra insana e desigual. Cultura patriarcal que privilegia o homem e discrimina a mulher. Mulher trapo, mulher objeto, mulher coisificada. Preconceito e aversão. Banalização do mal. Coisificação da mulher. Água escorrendo pelo banheiro. Do chuveiro, da pia. Escorre água e sangue no corpo do assassino. Respingos de sangue nas paredes do banheiro. Pega uma toalha. Se enxuga. Vai ao quarto. Salta o corpo. Pega uma sacola. Põe nela roupas, sapato e sandália havaiana. Salta novamente o corpo. Vai ao banheiro. Pega sabonete, shampoo, desodorante. Vai para a sala. Tranquilamente abre a porta da rua. Volta à sala. Pega as chaves do carro em cima da mesa. Sai da casa. Vai ao carro. Liga-o e num arranque só chega à rua. Vira a esquina. Sai na avenida mais próxima e mete o pé no acelerador. Quer sair daquele bairro o quanto antes. Antes que os vizinhos ou os parentes se deem conta do ocorrido. Antes que chamem a polícia. Antes que a polícia venha. Lhe faça perguntas. Identifique-o como sendo o assassino. Mas, por que fez isso? Por que matar assim sem que nem pra que? Só porque ela é uma mulher? E o preço da vida de uma mulher nessa sociedade machista é quase nada? Baratinho. Só precisa estar com muito ódio no coração e ter que descarregar este ódio, a facadas, em outro coração? O homem feminicida não quer saber de nada. “É isto um homem? ” Só quer fugir e sair por aí matando, matando, matando… A sangue frio. Deixando uma mulher, sua história, seus sentimentos, sua alegria de viver, para sempre, estraçalhados no chão!!!
Doralina Rodrigues Carvalho é mestre em Psicologia Clínica pela (PUC-SP), professora do Centro de Filosofia do Instituto Sedes Sapientiae – SP, coordenadora do Instituto Candeias, terapeuta e supervisora clínica, e autora do livro Vestígios do mundo e da vida contemporânea, recém lançado pela Terra Redonda Editora.
