
20ª edição acontecerá no CineSesc e no CCBB SP. A abertura terá exibição do filme “Tudo o que resta de você”, da diretora palestino-americana Cherien Dabis. A programação inclui ainda debates e obras que marcaram estas duas décadas, como o filme “Cinco Câmaras Quebradas”.
Por Abdel Latif Hasan Abdel Latif *
O curador da 20ª Mostra de cinema árabe no Brasil, Sr Arthur Jafet, foi sábio na escolha desse filme palestino para abrir a mostra.
O filme tenta responder uma pergunta existencial para os palestinos e hoje, para muitos árabes. O que restou de você, para você, de nós, nesse mundo, após o roubo pelos sionistas, da nossa pátria, nossos sonhos, nossas memórias.
Muitos intelectuais palestinos tentaram responder essa pergunta como Ghassan kanafani e Edward Said.
Para Kanafani, em suas obras, como “O MUNDO QUE NÃO É NOSSO” e “O QUE RESTOU PARA VOCÊ”, a resposta era singela: Resistir!
Para Said, em sua autobiografia “FORA DO LUGAR”, a pergunta e a resposta são mais complexas. Para ele, perder a palestina não era apenas perder o lugar, mas nunca mais se encontrar em espaço algum, sempre vagar fora do lugar. Para Said, a Nakba transformou os palestinos em nômades em um deserto imenso – o mundo.
Said afirma que recuperar o lugar Palestina significa necessariamente recuperar nosso espaço no mundo, mas também reconstruir nossa existência física e espiritual.
O filme narra a história de uma família palestina de Yafa. A origem do nome da cidade é canaanita e significa cidade magnífica, majestosa, formosa.
Os sionistas após o roubo da Palestina, mudaram o nome para Yafo, bonito, sem raízes na terra e na história. Transformaram o magnífico em apenas bonito.
Hoje, são poucos os árabes que restaram em Yafa, mas caminhando pelas ruas da cidade, pulsam mesquitas, igrejas, estabelecimentos, moradas e cafés árabes.
Os colonos judeus roubaram o espaço, o lugar. Mas, segundo Said, nunca vão se apropriar da aura, alma e perfume da cidade. Yafa ainda hoje fala árabe e no ar sufocado pela presença dos ladrões da terra, ainda se consegue sentir o perfume inconfundível de uma pátria que não mudou de nome, nem de alma: Palestina.
Voltando ao filme, que narra a saga de uma família tipicamente palestina, antes da nakba de 1948, se vê o cotidiano e os sonhos: trabalhar na terra, educar os filhos e ter pequenos luxos e desejos, como viajar, ir ao cinema, brincar. Tudo isso foi interrompido quando as hordas judaicas sionistas atacaram a cidade.
A família foi obrigada a abandonar sua casa e sua terra e abrigar-se em um campo de refugiados miserável em Nablus, cidade da Cisjordânia, em condições degradantes: de tendas a favela.
A família tenta sobreviver, mas a Naksa, nova Nakba de 1967, persegue a família. Então, Israel passa a ocupar toda a Palestina histórica.
A família passa a enfrentar nova realidade. Após a primeira fase da grande limpeza étnica de 1948, agora, a ocupação sionista impregna toda a Palestina.
O filme mostra a realidade cruel da vida sob ocupação sionista. Sua simples existência, sua dignidade, segurança de seus filhos e sua casa, são ameaçadas e vitimizadas cotidianamente.
Resta evidente ao espectador como Israel, por trás da propaganda – hasbara, tem a face satânica.
A humilhação por humilhar, a destruição e crueldade desmotivadas e sem sentido, o desrespeito absoluto à vida e dignidade dos palestinos, são escancarados no filme.
A família, que já havia sido roubada de todos seus bens, tem seu filho adolescente assassinado com tiro na cabeça, pelo exército de Israel.
O pai se vê em um dilema: doar ou não os órgãos do seu filho, já que os receptores poderão ser os soldados assassinos de Israel.
O diálogo entre a mãe do mártir doador dos órgãos e do judeu que recebeu o coração palestino é talvez o ponto mais revelador do filme: infelizmente, o bom coração não cura as doenças da alma.
Apesar de o filme lançar a semente da reflexão, ele tenta responder de forma eloquente a pergunta principal: o que sobrou de você? Aparentemente, nada sobrou. Os palestinos perderam tudo: a pátria, o lugar, a história.
Mas o ditado de que as aparências enganam se evidencia real na Palestina. Muito sobrou. Sobrou o essencial: a Palestina, que tentam apagar não apenas do mapa, mas principalmente da consciência dos árabes e do mundo.
O sionismo falhou. A Palestina ainda está e continuará viva, pulsando com toda sua majestade histórica e sua juventude de cinco mil anos.
Sobrou Yafa, que como sempre, fala árabe.
O que sobrou e o que vai sobrar de nós, palestinos, determinados como nunca, a recuperar tudo o que um dia os sionistas judeus roubaram de nós: nossa pátria e nossa história.
Sobraram vocês e o mundo, que enxerga cada vez mais que a natureza diabólica de Israel e a luta dos Palestinos por justiça e liberdade e percebe que é uma luta de todos os que acreditam em um mundo ético!
Certamente, um mundo sem Palestina, é um mundo sem memória, sem valores, sem humanidade!
Gratidão a Arthur Jafet e ao ICARABE, pela sua coragem e determinação. É o sentimento de um palestino, que ainda acredita que a arte, coragem e a solidariedade, podem vencer os canhões e criar um mundo mais justo.
Palestina livre do rio ao mar é o primeiro passo para a vitória do mundo!
*Abdel Latif Hasan Abdel Latif , Médico palestino