O Escudo de Abraão certamente não é um plano de paz, mas sim um projeto de guerra disfarçado na linguagem de relações públicas de estabilidade e prosperidade mútuas.
Anis Raiss

Crédito da foto: The Cradle
10 DE JULHO DE 2025
Dias após a guerra de 12 dias entre Israel e Irã, motoristas em Tel Aviv foram recebidos por um enorme outdoor digital repleto de rostos familiares: membros da realeza do Golfo Pérsico em trajes impecáveis, presidentes árabes em ternos passados, todos agrupados sob uma faixa ousada – A Aliança de Abraão.
Não houve esclarecimento sobre quem havia assinado formalmente, nenhuma nota de rodapé sobre “consultas em andamento”. A imagem não fazia distinção. A mensagem era clara: sejam oficialmente declarados ou discretamente alinhados, esses governos já haviam se alistado na visão regional do Estado ocupante.
Durante anos, governos árabes atuaram em ambos os lados – emitindo declarações de solidariedade à Palestina, enquanto coordenavam o espaço aéreo, a inteligência e os investimentos com Tel Aviv. A Arábia Saudita afirma repetidamente que não se normalizará sem um movimento em direção à criação de um Estado palestino, mesmo com jatos israelenses cruzando seus céus e delegações empresariais sendo discretamente trocadas.
Então, o outdoor revelou a verdade? Ou simplesmente confirmou o que há muito tempo era negado?
O plano por trás do outdoor
Não foi um golpe de relações públicas. Foi a revelação pública de uma estratégia para transformar Gaza em um laboratório controlado, recrutar Estados árabes para uma aliança anti-Irã e redesenhar fronteiras sem guerra nem negociação – apenas poder e cumplicidade.
O plano por trás deste outdoor não é um boato, mas um documento político formal redigido em março por mais de 100 ex-generais, oficiais de inteligência e diplomatas israelenses. Apelidado de “Escudo de Abraão”, sua retórica de “estabilidade” e “prosperidade compartilhada” encobre um plano para expandir o projeto da Grande Israel.
Em termos simples, o plano institucionaliza o apartheid, planeja o apagamento demográfico em Gaza e reformula a Palestina como um enclave pacificado governado por procuração.
Ele estabelece seis pilares: a transformação de Gaza – erradicando o Hamas e instalando uma autoridade transitória controlada por estrangeiros, apoiada por forças de segurança externas; a desmilitarização – uma década ou mais de fronteiras fechadas, desarmamento e vigilância digital, transformando Gaza em uma zona de contenção monitorada; a reconstrução econômica – vinculada a uma economia sem dinheiro e controlada por biometria, projetada para recompensar a submissão e punir a dissidência; uma coalizão regional de execução – a “Aliança de Abraão”, onde os estados árabes alinham esforços de inteligência e repressão com Israel; a Síria como um amortecedor – um plano explícito para a mudança de regime no sul e um corredor de segurança israelense para romper a soberania síria e conter o Irã; a contenção do Irã – uma estratégia híbrida de sanções, sabotagem, assassinatos e isolamento diplomático para desmantelar a influência regional iraniana.
Do Hamastão ao Abraãostão: Um dicionário da ocupação
O Escudo de Abraão não é apenas um mero projeto territorial, mas também semântico.
Em seu livro “1984”, George Orwell explicou como a linguagem é transformada em arma para eliminar alternativas. O professor e acadêmico americano Noam Chomsky chamou isso de fabricação do consentimento. Na retórica do Escudo, Gaza não é mais um território ocupado e sitiado.
Ela é rebatizada como “Hamastão” – um experimento fracassado cuja destruição é justificada e virtuosa. O próprio primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu declarou que “não haveria Hamastão”, revelando a premissa ideológica por trás da dizimação de Gaza.
A ironia é gritante. Por mais de uma década, a inteligência israelense apoiou discretamente o Hamas, não por apoio, mas por estratégia – explorando a divisão para fragmentar a unidade palestina. O Mossad coordenou transferências de dinheiro do Catar sob o disfarce de ajuda humanitária, o que, na verdade, consolidou um rival interno controlado do Fatah.
Essa mesma estratégia agora está sendo usada para justificar o apagamento de Gaza. O documento do Escudo classifica Gaza como “ingovernável”, exigindo reabilitação sob supervisão israelense e regional.
Palavras como “libertação” e “reabilitação” saturam suas páginas. Bombardeios são reformulados como “operações para restaurar a ordem cívica”. Pontos de controle biométricos são enquadrados como “mobilidade segura”. Deslocamento em massa se torna “realocação humanitária temporária”.
Isso é uma estratégia e não tem nada a ver com semântica. A ocupação é disfarçada de salvação e a limpeza étnica é apagada pelo léxico do progresso.
Nessa distopia, a destruição da vida política palestina é retratada não como escalada, mas como correção. O resultado? Abrahamstan – um futuro onde a submissão e a normalização são rebatizadas como paz.
Solidariedade diante das câmeras, submissão na política
Os Estados árabes agora operam em plena dissonância cognitiva, condenando os crimes de guerra do Estado ocupante diante das câmeras enquanto subscrevem suas políticas de apartheid em particular – uma duplicidade que é desmascarada e até celebrada.
Como alertou o teórico da comunicação Marshall McLuhan, “o meio é a mensagem”. Mas no mundo árabe, a mensagem é manipulada para o que o sociólogo Jean Baudrillard chamou de hiper-real – um espetáculo mais convincente do que a própria verdade.
A Arábia Saudita é a mestra desse teatro. Riad insiste que não pode haver normalização sem a criação de um Estado palestino. Enquanto isso, aeronaves israelenses transitam livremente pelo espaço aéreo saudita e os laços econômicos se aprofundam por meio de intermediários. Até mesmo a recente mudança diplomática em direção ao Irã, aclamada como recalibração estratégica, é na prática uma demonstração de equilíbrio, preservando os canais com Tel Aviv.
Os Emirados Árabes Unidos dispensaram até mesmo pretensões simbólicas. Desde os Acordos de Abraão, conglomerados emiradenses investiram milhões em tecnologia de vigilância e armas israelenses. Em 2023, quando bombas caíram sobre Gaza, o Ministro das Relações Exteriores dos Emirados, Abdullah bin Zayed, descreveu os eventos como “profundamente preocupantes”, ao mesmo tempo em que saudou uma missão comercial israelense em Abu Dhabi.
O Marrocos foi ainda mais longe. No início de 2024, realizou exercícios militares conjuntos com a Brigada Golani de Israel – uma unidade acusada de cometer crimes de guerra – sob o eufemismo de “capacitação técnica”.
O alinhamento do Egito é mais estrutural. O governo do presidente Abdel Fatah el-Sisi está preso a mais de US$ 20 bilhões em empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI) e depende das importações de gás israelense para abastecer sua rede. Publicamente, lamenta os “excessos” de Tel Aviv. Privadamente, coordena a segurança no Sinai e sela a passagem de Rafah.
A Jordânia reduziu sua postura de resistência a cosplays do TikTok. As acrobacias intensamente coreografadas do Rei Abdullah II da Jordânia – saltando de veículos blindados, disparando rifles e se passando por comandante de campo – mascaram uma realidade constrangedora.
Em um vídeo viral amplamente divulgado pela mídia regional, o presidente do Comitê de Segurança Nacional de Israel, Boaz Bismuth, teria se gabado: “Podemos acordar o Rei da Jordânia no meio da noite para cumprir nossas ordens”. Embora Tel Aviv não tenha confirmado a declaração, sua popularidade demonstra a percepção regional de que a monarquia jordaniana não opera mais com autonomia real.
Um outdoor em Damasco
Mesmo na Síria, resquícios da rebelião são cooptados. Em maio, o presidente interino Ahmad al-Sharaa, ex-chefe da Hayat Tahrir al-Sham (HTS), afiliada à Al-Qaeda, que usava o nome de guerra Abu Mohammad al-Julani, disse a um veículo de comunicação da comunidade judaica em Damasco que seu governo, profundamente enraizado no extremismo sunita, e Israel “compartilham inimigos em comum”.
Um mês depois, o chefe de gabinete israelense foi visto no sul da Síria em meio a relatos de negociações indiretas de normalização. Até as cinzas da resistência estão sendo recicladas na arquitetura da normalização.
Essa trajetória foi consolidada quando um outdoor apareceu no centro de Damasco, associando Sharaa ao presidente dos EUA, Donald Trump, sob o slogan “Líderes Fortes Fazem a Paz”.
O sociólogo francês Pierre Bourdieu chamou esse fenômeno de violência simbólica – a imposição de uma visão de mundo tão absoluta que se disfarça de verdade. Essa é a lógica de The Abraham Shield. Governos árabes entoam cânticos de libertação enquanto facilitam a desapropriação – rotulando abertamente a traição como pragmatismo.
As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente as do Oriente Mídia
Fonte: The Cradle.