Neste artigo, Dr. Ezzideen Shehab, escrevendo de Gaza, nos conta sobre crianças que vêm ao mundo sem esperanças de viver e sobre suas mães… e sobre bombas que incubam.
Eu reproduzo abaixo o texto escrito pelo autor e publicado na sua conta do X, com sua graciosa autorização. É um relato potente que dispensa mais comentários.

Ezzideen Shehab
Ontem, no Hospital Al-Awda, no norte de Gaza, uma menina veio ao mundo, e o mundo a rejeitou.
Ela não tinha cérebro. Não no sentido poético de inocência ou pureza, mas anatomicamente, literalmente: anencefalia.
Sem cérebro. Nenhum futuro pensamento, nenhum sonho, nenhuma memória a ser construída. Um crânio vazio de propósito.
Ela estava a termo. Sua mãe a carregou por nove longos meses, através de noites escaldantes e manhãs chorosas, através da poeira, da dor e das sirenes.
E então, o nascimento. Mas não há vida para salvar. Apenas silêncio.
Os médicos ficaram impotentes, ridicularizados pelos limites de suas mãos. Eu os vi, pessoas da medicina, seus dedos habilidosos e estéreis tremendos. Não de confusão, mas de reconhecimento.
Bombas atingiram não apenas prédios, mas cromossomos. As armas, de aço, de aço, americanas, caíram não apenas para destruir o presente, mas para corromper o útero. Para envenenar a ideia do amanhã.
Como chamamos esse horror? Radiação? Dioxinas? Urânio empobrecido?
Toxinas invisíveis que não matam rapidamente, elas esperam. Elas se incorporam, atravessam as paredes da placenta e torcem o tubo neural. Elas interromperam a vida antes que ela começasse.
Há mais casos. Abortos espontâneos. Partos prematuros. Membros deformados. Fendas palatinas mais largas que a tristeza. Medulas espinhais como pergaminhos quebrados.
Os médicos sussurram agora, isso não é um surto. É um padrão. Um estudo da Lancet alerta para até 200.000 vítimas indiretas, não de danos de explosão, mas de danos genéticos transmitidos às gerações futuras.
Foto de Sangharsh Lohakare no Unsplash
Mas o mundo é surdo. Ele conta os mortos por explosões, não deformidades. Ele rastreia as baixas por membros perdidos, não por genes destruídos.
E aqui, sob os escombros, a ferida mais profunda está no útero.
Eu vi ontem. Uma mãe. Ela não chorou. Ela apenas olhou. Seus braços estavam vazios. Ela carregava uma filha sem cérebro.
Mas a criança tinha conhecimento. Dedos. E isso é o mais terrível: que a vida tentou. Que o corpo obedeceu. Que, mesmo no apocalipse, as células se desenvolvem.
Em algum lugar, outra criança pode nascer marcada pelo ar que sua mãe respirou. E eles não sabem por quê.
Dizem que a guerra acaba. Que o cessar-fogo chega. Que a cura é possível. Mas como pode acabar quando vive em células? Quando a placenta se torna um campo de batalha? Quando a biologia se torna o arquivo da guerra?
Esta não é apenas uma guerra de fogo e aço. É uma guerra contra a vida. Contra as mulheres. Contra o próprio ato de dar à luz.
Eu vi a morte, corpos dilacerados, pulmões ofegantes e costelas quebradas.
Mas nunca ouvi um silêncio tão alto quanto quando uma mãe dá à luz uma criança já condenada pelo céu acima dela.
E então eu escrevi. Não para acusar. Não para chorar. Mas para lembrar.
Porque algumas armas não explodem. Elas incubam.