Programa Sem Fronteiras: O que foi dito e o que não foi dito sobre o EIIL 2

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 Natália Forcat para Oriente Mídia

 teveOM

O programa Sem Fronteiras da Globo News, apresentou dias atrás um especial chamado O radicalismo do Estado Islâmico do Iraque e da Síria no qual abordou um tema que tem ocupado as manchetes dos informativos internacionais nos últimos dias: o avanço de grupos “radicais” no Iraque e a possível fragmentação do país árabe. O assunto foi abordado com o sensacionalismo e a parcialidade habituais, sedimentando velhos estereótipos e preconceitos, principalmente ao sonegar informações fundamentais para entender os acontecimentos.

Não é de hoje que o mundo árabe é apresentado na mídia como um mundo caótico e selvagem, onde devemos esperar que aconteçam as piores barbáries, isso é mostrado abertamente ou de forma subliminal como algo “natural” da região ou como parte da cultura árabe e de Médio Oriente, porém seria bom lembrar que o maior atentado a bomba contra populações civis foi realizado por países não-árabes em Hiroshima e Nagazaki, também seria bom lembrar que as guerras mundiais, que deixaram dezenas de milhões de mortos, não aconteceram em países árabes, nem islâmicos. Também não foram árabes que lançaram toneladas de Napalm e Agente Laranja em áreas habitadas por civis, causando efeitos devastadores sobre a cobertura vegetal e a população durante a guerra do Vietnã. Então está na hora de parar de querer colar a pecha de “selvagem” no mundo árabe e começar a repartir as culpas pelo caos instaurado na região.

 

Não foram árabes que lançaram toneladas de Napalm e Agente Laranja no Vietnã.

Dito isto, vamos ao programa em questão que pretendia explicar o surgimento do “radicalismo” e para o qual foram convidados três especialistas que seguramente tiveram suas falas recortadas com objetivos mais que evidentes.

O que foi dito e o que não foi dito.

1- Como se fortaleceram os chamados “radicais islâmicos” do EIIL

O professor Charles Tripp da Universidade de Londres afirma que embora o EIIL seja formado maioritariamente por sírios e iraquianos de “alguma forma a guerra civil na Síria e o conflito no Iraque atraíram pessoas do Norte da África, Sul da Asia e Europa.

O EIIL não surgiu e se fortaleceu “de alguma forma” misteriosa, não foi resultado de um processo migratório de “manadas humanas”, nem um acontecimento espontâneo, na verdade este grupo nada mais é que um exército mercenário, ao qual algumas pessoas se unem por ideologia (estimulados por alguns sheiks extremistas) e outras se aproximam por dinheiro. O exército atrai “mão de obra” marginalizada e desempregada de diversos países com promessas de enriquecimento fácil, inclusive recrutando menores de idade como foi denunciado em várias ocasiões.

Tanto se transformou o EIIL numa empresa que o próprio entrevistado chega a afirmar que muitos consideram o grupo como um “modelo de empresa do século XXI” pela sua habilidade em captar recursos, seja através de patrocínio, como através de sequestros, roubos, cobrança de taxas e desvio de petróleo das regiões ocupadas, etc. Porém, na reportagem não foram citados seus patrocinadores ocidentais, como França, Reino Unido e EUA, todos países aliados da Arabia Saudita, principal patrocinadora do EIIL.

Este tipo de exércitos começou a ser montado para derrocar governos que não se curvavam o suficiente aos interesses ocidentais, como a Líbia de Kadaffi. Em 2011, quando eclodiu o que se chamou de “primavera árabe”, houve a formação do Conselho Nacional de Transição (CNT), na Líbia, que tinha um braço político e um braço armado patrocinado por Qatar e Turquia com amplo apoio de países ocidentais. Graças ao apoio ocidental, o suporte da ONU, a participação da OTAN (que bombardeou cidades repletas de civis com o pretexto de protege-los) e de seus aliados regionais, este grupo conseguiu chegar ao poder na Líbia em agosto de 2011, assassinando sob tortura o líder do país africano. Durante este período houve intenso fornecimento de armas a estes grupos por parte de diversos países.

 

Milicianos do CNT líbio.

Posteriormente, muitos destes milicianos foram transferidos para Síria com o objetivo de promover a troca de governo nos mesmos moldes que tinha sido feito na Líbia, porém enfrentaram forte resistência por parte do governo e da própria população síria que estava aterrorizada com os recentes acontecimentos na Líbia.

O primeiro grupo de milicianos a se formar na Síria nesse período foi o Exército Livre Sírio ou ELS (FSA na sigla em inglês) criado em 29 de julho de 2011 e que contou com apoio e patrocínio ocidental e local (principalmente de Turquia e Qatar). A partir de julho de 2012, EUA passou patrocinar abertamente o grupo conhecido como “Amigos da Síria” que era o braço político do ELS, realizando diversos encontros em Ancara, Turquia.

EUA e seus aliados sempre defenderam que o ELS era um grupo “laico e moderado” mas desde sua criação o grupo tem radicais na sua composição, tanto é que as diversos facções extremistas que surgiram posteriormente são formadas por desertores do ELS.

Ao não conseguir seus objetivos, o ELS se fragmentou e começaram violentas batalhas entre as milícias que eram patrocinadas por diferentes atores regionais, assim surgiram numerosos grupos como a frente Ahrar al Sham, a 19ª Divisão, a milícia Al Tawhid e a temida Frente AlNusra (este último patrocinado por Arabia Saudita). Cada patrocinador tentava impor no terreno sua milícia particular e assim muitas armas eram trocadas, roubadas e/ou vendidas entre os grupos, inclusive armas químicas como as que foram usadas no distrito de Damasco causando a morte de mais de 1.000 inocentes.

Exército Livre Sírio

Então é inegável que o EIIL, que tinha sido criado em 2004 no Iraque, cresceu e se fortaleceu graças ao patrocínio ocidental aos grupos que tentam derrocar o presidente sírio Bashar Al Assad já que muitas armas passaram ao seu poder durante os combates entre os grupos e também por causa das alianças entre eles.

Há, também, denuncias publicadas em várias mídias internacionais que afirmam que EUA prestou treinamento militar a milicianos ligados a EIIL na Jordânia.

Tanto a Frente AlNusra como o EIIL foram declaradas organizações terroristas por EUA, mas não aconteceu o mesmo com o ELS que continua sendo considerado um grupo “moderado” embora use os mesmos métodos violentos (decapitações, execuções sumárias, etc) e atuem juntos em várias frentes, aliás, durante a invasão de Mossul, dias atrás, a bandeira do Exército Livre Sírio pode ser vista misturada às bandeiras do EIIL nos vídeos divulgados nas suas páginas nas redes sociais.

Portanto o discurso oficial, repetido pela imprensa monopólica, é que existem “bons jihadistas” (quando lutam a favor de interesses ocidentais) e “maus jihadistas” (quando defendem seus próprios interesses ou apoiam governos que ocidente desaprova).

2- E o Panarabismo, onde foi parar?

O professor Zachary Lockman da Universidade de Nova York afirma que embora o conflito tenha raízes bem limitadas no século VII (divisão de sunitas e xiitas após morte do profeta), o que acontece agora é um “fenômeno moderno”. Segundo ele ambas comunidades conviviam lado a lado, havendo inclusive muitos casamentos entre membros de ambos grupos, principalmente na classe média. Disse que durante muito tempo não era bem visto socialmente perguntar se alguém era sunita ou xiita, senão que todos se identificavam principalmente como árabes e iraquianos antes que nada.

O que foi omitido no programa foi um dos principais factores que propiciaram esta convivência: o panarabismo e o nacionalismo árabe.

Desde a independência dos países árabes do jugo otomano, houve a consciência que devido a diversidade étnica, cultural e religiosa o mais vantajoso para a região seria procurar a unidade através de um movimento laico que englobasse todos os árabes, independentemente de sua origem. Assim surgiram o nasserismo (no Egito) e o partido Baath (na Síria e no Iraque), as duas correntes políticas principais na defesa do nacionalismo árabe e com forte influência socialista. Entre suas reivindicações defendiam a unificação do mundo árabe numa só nação, nacionalização das empresas estrangeiras e reforma agrária, além do desenvolvimento e modernização de serviços públicos, educação laica para homens e mulheres e redução da desigualdade social.

Estes movimentos alcançaram o seu auge na década de 60/70, começando o seu declínio nos anos 80. Por causa da defesa dos interesses nacionais o panarabismo era temido por ocidente que começou a apostar em grupos islâmicos como a Irmandade Muçulmana no Egito para minar o apoio ao nacionalismo árabe. No Afeganistão, após o triunfo de uma revolução comunista, EUA passou a financiar movimentos anticomunistas para provocar a invasão soviética, para isto a começo de 1979 oficiais estadunidenses começaram se reunir com insurgentes, que passaram a ser patrocinados abertamente a partir de julho de 1979. A “jihad” contra a influência soviética no Afeganistão foi apoiada pelas administrações de Carter e Reagan.

Reagan na Casa Branca, março de 1983.

Se calcula que EUA investiu uns 40 bilhões de dólares com os mujahidines, provendo eles de armamentos modernos e todo tipo de equipamento necessário. Já na década de 1990, a Argélia foi o palco de uma guerra civil promovida pelos extremistas que retornaram do Afeganistão, contra o governo laico.

Na Palestina, os grupos islâmicos foram promovidos por Israel para tentar enfraquecer as bases dos grupos palestinos nacionalistas seculares. Da mesma forma foram patrocinadas milícias islâmicas contra os governos seculares de Kadaffi e de Bashar AlAssad.

Então podemos perceber que durante a guerra fria o agora chamado de “radicalismo” islâmico era visto pelo Ocidente como um “mal menor” ou simplesmente como um aliado pois o principal inimigo a combater era o comunismo. E o panarabismo, que colocava muitos países árabes na área de influência soviética, também devia ser combatido.

Com o fortalecimento da Rússia e o recrudescimento da guerra fria, os alvos passaram a ser os países com alguma proximidade do eixo russo-iraniano, para esse fim nada melhor que um exército mercenário anti-russo e anti-xiita.

3- Quem são os políticos que apoiam o sectarismo religioso?

Segundo Lockman, “há políticos explorando as diferenças religiosas para ter vantagens e isso trará consequencias terríveis”. Não há como discordar das afirmações de Lockman, só que infelizmente estes políticos não foram citados.

Teria sido interessante conhecer os nomes dos políticos que incentivam o sectarismo religioso, segundo o estudioso.

Poderiamos sugerir para a lista alguns políticos regionais como os membros da casa Saud, muitos políticos libaneses que apoiam os terroristas, o primeiro ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, e o destronado membro da Irmandade Muçulmana, Mohamed Mursi, entre outros. Sem esquecer que Israel também prestou suporte hospitalar a muitos extremistas que fugiram de Síria pelo Golan, mas o apoio sionista aos extremistas tem sido “na surdina” para não despertar a ira dos próprios cidadãos israelenses, motivo pelo qual optaram por prestar apoio através de bombardeios ocasionais e apoio logístico discreto.

Senador MacCain em encontro com membros do Exército Livre Sírio.

 
Já entre os apoiadores ocidentais vale a pena citar o “filósofo” francês Bernard Henri Levi, que foi o principal incentivador para que o ex-presidente Nicolas Sarkozy embarcasse na guerra contra a Líbia. Políticos ingleses e franceses fizeram lobby para que fossem aprovados subsídios destes países aos extremistas. Políticos americanos também participaram entusiásticamente do grupo de “amigos da Síria” como Hillary Clinton e posteriormente John Kerry e especialmente o senador John MacCain que promoveu muitos encontros com os “jihadistas do bem” do ELS. E não podemos esquecer do Obama, que tem prestado vivo apoio aos “terroristas moderados”.

4- Síria, uma “ditadura” alawita?

Entre as informações fornecidas e sonegadas no programa, temos que destacar um dos argumentos mais inverossímeis que têm sido usados contra o legítimo governo sírio e é a tese de que uma minoria alawita teria implantado uma espécie de ditadura sectária religiosa sobre a maioria sunita do país. O próprio professor Lockman se atreve a afirmar durante a entrevista que “na Síria há uma revolta da maioria contra um governo de minorias” enquanto “no Iraque uma minoria luta contra um governo da maioria”. Esta tese descabelada se choca com fatos concretos e incontestáveis: se na Síria há uma “ditadura de uma minoria” como se explica que o governo tenha resistido por mais de três anos? Se no Iraque o governo tem apoio da maioria como explicar que um grupo tenha conseguido tomar o controle de quase um terço do território em apenas 10 dias? Não faz o menor sentido!

Então vamos aos fatos. O governo da República Árabe Síria é laico e panarabista, o partido que está no governo é o velho Baath sírio, composto maioritariamente por sunitas, portanto não é um governo baseado na religião, ao contrário, estimula o convívio religioso entre cristãos e muçulmanos xiitas e sunitas. Outro dado importante é que 75% dos soldados do Exército Sírio são sunitas, se o que acontece na Síria fosse uma “revolta sunita” como defende Lockman, o governo teria caído em questão de semanas pois os alawitas não chegam nem a 10% da população síria.

Na Síria as pessoas são antes que nada sírias, e depois que se identificam como cristãos, druzos ou muçulmanos.

5- O intolerável “sectarismo” de Maliki

Lockman disse que EUA ajudou a instalar no Iraque um regime sectário e por isso não surprende que exista uma revolta sunita contra o regime. Ele afirma que “Bagdá era uma cidade heterogênea e atualmente é uma cidade xiita”. Mais adiante, no vídeo podemos ouvir que: “Europa e EUA consideram Maliki sectário demais na defesa dos interesses xiitas contra os sunitas do Iraque” e que “Maliki resiste às pressões de países ocidentais para governar com mais isenção internamente e não se alinhar tanto com o vizinho Irã”. É possível que o primeiro-ministro iraquiano tenha agido com sectarismo mas o que mais impressiona é a hipocrisia ocidental que pressiona por mudanças no governo iraquiano enquanto seus maiores aliados, Arabia Saudita e Israel, são os países mais sectários da região.

Por que incomoda tanto à Europa e EUA o suposto sectarismo de Maliki e não incomoda o sectarismo da casa Saud, por exemplo? Ou o sectarismo e a limpeza étnica na Palestina?

Outra coisa que chama a atenção é que um dos objetivos declarados do EIIL no Iraque é derrocar o primeiro-ministro Maliki e, “coincidentemente”, este também é um dos objetivos da administração Obama.


7- Mortos iraquianos na guerra são esquecidos

No final do programa o repórter afirma: “Pega muito mal a situação atual do Iraque depois da morte de 4.000 soldados americanos e o gasto de 1 trilhão de dólares na guerra que pode ter sido em vão.”

E os mortos iraquianos? Como é possível fazer um programa sobre o Iraque e “esquecer” completamente dos mortos provocados por essa guerra? Se estima que entre 500.000 a 1.200.000 iraquianos teriam morrido de forma violenta por situações relacionadas, direta ou indiretamente, à guerra. Houve algo em torno de 4 milhões de refugiados (16% da população da época), dos quais metade fugiu para países vizinhos e o resto se deslocou internamente. Segundo a ONU, 40 % da classe média iraquiana fugiu do país e não regressou. Milhares de mulheres iraquianas foram estupradas e forçadas a se prostituir no Iraque ou países vizinhos.

Prisão de Abu Ghraib, no Iraque

Todo tipo de abusos contra os direitos humanos foram cometidos no Iraque desde 2003, incluindo bombardeios sobre áreas civis, tortura institucionalizada, uso de armas químicas, assassinatos de inocentes, todo tipo de abusos contra crianças, destruição de infraestrutura sanitária: hospitais, escolas, saneamento básico, isso sem falar nas crianças de Fallujah que até hoje nascem com malformações congênitas causadas pela contaminação do solo pelo urânio empobrecido e o fósforo branco usado nas bombas. Isto é apenas um resumo de todas as atrocidades que aconteceram no Iraque e o programa só fala nos mortos ocidentais?

Então o que podemos concluir é que o que realmente “pega muito mal” na edição do programa da Globo News são todos os dados esquecidos, os mortos ignorados e os patrocínios e cumplicidades escondidos.

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2 thoughts on “Programa Sem Fronteiras: O que foi dito e o que não foi dito sobre o EIIL

  1. Responder sergio jun 25,2014 19:43

    Olá, adoro os textos do seu site! São ótimas fontes de informação, com grande profundidade no assunto. Tenho aprendido muita coisa que não temos como saber aqui no Brasil. Parabéns e continuem assim!

  2. Responder sd torres pmerj ago 22,2014 17:59

    muito bom

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