Pepe Escobar: Nosso sombrio futuro: neoliberalismo restaurado ou neofascismo híbrido? 2

Share Button

Com o espectro de uma Nova Grande Depressão pairando sobre grande parte do planeta, as perspectivas realpolitik de uma mudança radical na estrutura da economia política na qual vivemos não são exatamente animadoras

Demonstrators protest against the 50th Davos World Economic Forum

Manifestantes protestam contra o 50º Fórum Econômico Mundial de Davos (Foto: REUTERS / Arnd Wiegmann)

Por Pepe Escobar, especial para Strategic Culture

 

Com o espectro de uma Nova Grande Depressão pairando sobre grande parte do planeta, as perspectivas realpolitik de uma mudança radical na estrutura da economia política na qual vivemos não são exatamente animadoras.

As elites dominantes do Ocidente irão empregar uma miríade de táticas visando a perpetuar a passividade das populações que mal começaram a sair de uma prisão domiciliar de fato, incluindo um ímpeto maciçamente disciplinar – no sentido de Foucault – por parte de estados e círculos financeiro-empresariais.

Em seu livro mais recente, La Desaparicion de los Rituales, Byung-Chul Han mostra que a comunicação total, especialmente em um tempo de pandemia, agora coincide com a vigilância total: “A dominação se fantasia de liberdade. O Big Data gera um conhecimento dominador que abre a possibilidade de intervir na psique humana e manipulá-la. Visto sob esse ângulo, o imperativo de transparência de dados não representa a continuidade do Iluminismo, mas sim seu fim”.  Essa nova versão do Disciplinar e Punir de Foucault coincide com relatos de que  a morte da era neoliberal vem sendo grandemente exagerada. O que vem despontando no horizonte não parece ser um mergulho simplista no nacionalismo populista, e sim uma Restauração do Neoliberalismo – maciçamente narrada como uma novidade e incorporando alguns elementos keynesianos: afinal, na era pós-Lockdown, a fim de “salvar” os mercados e a iniciativa privada, o estado deve não apenas intervir mas também facilitar uma transição ecológica possível.

Em suma: talvez estejamos frente a um mero enfoque cosmético, no qual a profunda crise estrutural do capitalismo zumbi  – que segue se arrastando com suas “reformas” impopulares e suas dívidas infinitas – continua sendo ignorada.

Talvez estejamos nos dirigindo para algo além de um mero e tosco neofascismo. Podemos chamá-lo de Neofascismo Híbrido. Suas estrelas políticas curvam-se frente aos imperativos do mercado global, ao mesmo tempo em que transferem a competição política para a arena cultural.

É nisso que consiste o verdadeiro “iliberalismo”:  uma mistura do neoliberalismo – mobilidade irrestrita do capital e total liberdade de ação para os Bancos Centrais – e de autoritarismo político. É aí que encontramos Trump, Modi e Bolsonaro.

Do Antropoceno ao Capitaloceno 

Para contra-atacar o neoliberalismo zumbi, aqueles que acreditam que um outro mundo é possível sonham com uma renascença social-democrática: distribuição de renda ou, pelo menos, o neoliberalismo com um rosto humano.

É aqui que o ecossocialismo entra em cena: uma ruptura radical com os ditames da Deusa do Mercado, produto de uma rebelião saudável contra o neoliberalismo ultra-autoritário e o iliberalismo.

Em suma, isso poderia ser visto como uma adaptação branda das análises de Thomas Piketty: quebrar a dominação do capital usando a democracia econômica, no espírito da social democracia de meados do século XIX.

É bem interessante, quanto a isso, nos referirmos a Fully Automated Luxury Communism (Comunismo de Luxo de Automação Total), de Aaron Bastani, um estimulante manifesto utópico onde vemos que, assim que a sociedade se livrar de tudo o que é supérfluo e ligado à alienação, ainda será possível que todos encontrem  os meios técnicos necessários para ter uma “vida de luxo” sem ter que recorrer ao crescimento infindável imposto pelo Capital.      E isso nos leva ao elo direto entre o Antropoceno e o que foi conceituado pelo economista francês Benjamin Coriat como o Capitaloceno.

Capitaloceno significa que o nosso atual estado de degradação planetária não deve ser associado a uma “humanidade” indefinida, e sim a uma “humanidade claramente definida e organizada por um sistema econômico predatório”.

O estado do planeta no Antropoceno tem, imperativamente, que ser associado ao sistema econômico hegemônico dos dois últimos séculos: a maneira como desenvolvemos nossos sistema de produção e legitimamos práticas predatórias e indiscriminadas.

Resumindo: para superar esse estado de coisas, a economia terá que ser reorientada e reconstruída por meio de um “big bang nas políticas públicas e econômicas”.

No Antropoceno, a humanidade prometeica terá que ser contida para que se possa lidar adequadamente com o estupro da Mãe Terra.

O Capitaloceno, por seu lado, descreve o Capital como a raiz crucial e o condicionante do atual sistema mundial. O resultado da luta contra os efeitos devastadores do Capital irá determinar o futuro possível do ecossocialismo.

E isso traz de volta a importância dos bens comuns – que vão muito além da oposição entre propriedade privada e propriedade pública.

Coriat mostrou que o covid-19 deixou evidente tanto a importância dos bens comuns como a incapacidade do neoliberalismo de lidar com essa questão.

Mas como construir o ecossocialismo? Deveríamos partir do ecossocialismo em um único país (em algum lugar da Escandinávia)? Como coordenar sua implantação em toda a Europa? Como combater de dentro as estruturas ossificadas da União Europeia?

Afinal de contas, tanto o Neoliberalismo Restaurado quanto o iliberalismo já contam com estados e redes poderosas. Um bom exemplo são a Hungria e a Polônia, que continuam a funcionar como peças na cadeia de fornecimento industrial alemã.

Como evitar que alguém como Bill Gates assuma o controle de um organismo das Nações Unidas, a OMS, forçando-a assim a investir em programas que se encaixem em sua agenda pessoal?

Como mudar as regras de livre mercado da OMS, que permitem a compra de óleo de dendê e soja transgênica, contribuindo assim para o desmatamento de vastas áreas da África, Ásia e América Latina? Esse estado de coisas permite que as nações ricas de fato comprem a destruição de ecossistemas.

Revolução, não reforma

Mesmo que o neoliberalismo estivesse morto, e não está, o mundo ainda estaria carregando seu cadáver – parafraseando Nietzsche a propósito de Deus.

E apesar de a tripla catástrofe – sanitária, social e climática – ser agora inegável, a matriz dominante – estrelando os Senhores do Universo no comando do cassino financeiro – vai continuar se opondo a qualquer impulso de mudança.

As táticas diversionistas que apóiam uma “transição ecológica” não enganam a ninguém.

O capitalismo financeiro é especialista em se adaptar à série de crises provocadas ou desencadeadas por ele, e até mesmo a lucrar com elas.

Para atualizar maio de 1968, o que é necessário é L’Imagination au Pouvoir. Mas é perda de tempo esperar imaginação de meros fantoches como Trump, Merkel, Macron ou BoJo.

A realpolitik, mais uma vez, aponta para uma estrutura turbocapitalista pós- Planeta Lockdown, onde o iliberalismo – com seus elementos fascistas – do 1% e a turbofinanceirização nua e crua são reforçados pela exploração redobrada de uma força de trabalho exausta e agora em grande parte desempregada.

O turbocapitalismo pós-lockdown mais uma vez se reafirma depois de quatro décadas de thatcherização ou, para ser polido –  de neoliberalismo barra pesada. As forças progressistas ainda não têm munição para reverter a lógica dos altíssimos lucros canalizados para as classes dominantes – a governança da União Europeia aí incluída –  e também para as grandes corporações globais.

O economista e filósofo Frederic Lordon, pesquisador do CNRS francês, vai direto ao ponto: a única solução seria uma insurreição revolucionária. E ele sabe perfeitamente que o combo mercados financeiros-mídia empresarial jamais permitiria que isso acontecesse. O Grande Capital é capaz de cooptar e sabotar qualquer coisa.

Essa, então, é a escolha que nos resta: ou Restauração Neoliberal ou ruptura revolucionária. Sem nada no meio. É preciso alguém do calibre de Marx para construir uma ideologia ecossocialista plenamente desenvolvida para o século XXI, capaz de mobilização sustentada e de longo prazo. Aux armes, citoyens.

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

Share Button

2 thoughts on “Pepe Escobar: Nosso sombrio futuro: neoliberalismo restaurado ou neofascismo híbrido?

  1. Responder Aloys Neves jun 5,2020 3:12

    Uma visão lúcida, embora pessimista. Talvez a mudança precise ocorrer a partir de quem não se sente capturado por toda essa terrível teia de verdades e interesses ocultos. Talvez a ignorância termine sendo a mãe da coragem…Parabéns pelo texto. Tenho aprendido muito.

  2. Responder Marcos Rebello jun 7,2020 13:20

    Essa inércia política das massas cooptadas pelo capital e pela grande mídia é consequência direta da letargia intelectual daqueles que tem a obrigação de coordenar a logística disponível para efetuar as mudanças necessárias! Todos temos conhecimento suficiente do que é necessário ser feito para mudar essa situação. Mas a decadência moral impede. Temos dados, material didático e meios políticos para efetuarmos uma mudança radical no sistema. Apenas com o que expõe Thomas Piketty é suficiente. Com a degradação moral generalizada o que vemos excepcionalmente transparente é a inércia imbecil da esquerda e a corrupção dos políticos que são comprados e cooptados em plena luz do dia pelos grandes interesses financeiros e econômicos. Sabemos inclusive quanto são pagos para votar nesta ou naquela proposta que chega ao Congresso! Falta o quê para fazermos uma Revolução? Liderança, determinação e vontade! Porque a cambada sugadora é apenas saco de dinheiro.

Deixar um comentário para Marcos Rebello Cancelar comentário

  

  

  

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.