Pepe Escobar: Índia-China: O Quebra-Cabeça Himalaico

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A fronteira indo-chinesa é um tabuleiro estratégico que vem se tornando cada vez mais complexo

(Foto: Kashmir Pictures/Flickr)

Por Pepe Escobar, especial para o Consortium

Parecia saído de um thriller orientalista romântico passado nos Himalaias: soldados lutando com pedras e barras de ferro na calada da noite, à beira de um precipício a mais de 4.000 metros de altitude, alguns deles mergulhando para a morte em um rio quase congelado e morrendo de hipotermia.

Em novembro de 1996, a China e a Índia concordaram em não usar armas de fogo ao longo de sua fronteira de 3.800 quilômetros, conhecida como a Linha de Controle Real (LAC, em inglês) que, ocasionalmente, tende a descambar para  Linha Fora de Controle.

No entanto, essa não foi apenas mais uma rixa himalaica. É claro que se ouviram ecos da guerra sino-indiana de 1962 – que começou de maneira bem semelhante, mas que levou Pequim a derrotar Nova Delhi em campo de batalha. Mas, agora, o tabuleiro estratégico é muito mais complexo, sendo parte do Grande Jogo do século XXI que agora se desenrola.

A situação tem que ser neutralizada. Oficiais militares de primeiro escalão chineses e indianos, por fim, encontraram-se cara-a-cara neste último fim-de-semana. E, na terça-feira, o porta-voz do Ministro das Relações Exteriores da China, Zhao Lijian, confirmou que eles “haviam concordado em tomar as medidas necessárias para promover um esfriamento da situação”.

O Exército indiano concordou: “Houve consenso entre as duas partes quanto à cessação de toda e qualquer fricção no Leste de Ladaque”.

No dia seguinte, esse avanço foi confirmado em uma reunião por videoconferência dos três ministros do exterior da Rússia, Índia e China, grupo também conhecido como os RICs: Sergey Lavrov, Subrahmanyam Jaishankar  e Wang Yi. O Presidente Vladimir Putin, o Primeiro-ministro Narendra Modi e o Presidente Xi Jinping Xi irão se encontrar pessoalmente nas margens da cúpula do G-20, a ter lugar na Arábia Saudita em novembro próximo.

E esse encontro provavelmente se seguirá a uma outra videoconferência especial que ocorrerá no próximo mês, em São Petersburgo, durante as cúpulas combinadas dos BRICS e da Organização de Cooperação de Xangai.

Nosso drama himalaico começou há muito tempo, em outubro de 1947, quando o Marajá de Caxemira assinou um Instrumento de Adesão – juntando-se ao domínio da Índia em troca de apoio militar. Como a maior parte do Raj, a Caxemira também foi dividida: a região Oeste e Norte – chamada agora de Caxemira Azad (“Livre”) – e o Gilgit-Baltistan passaram a pertencer a Paquistão; o estado de Jamu e Cashemira tornar-se-ia uma parte autônoma da Índia; e o que é importante, o Aksai Chin, historicamente parte do Tibete, foi incorporado à China.

Em termos pessoais, essa região “topo do mundo” sempre foi uma de minhas favoritas em meu trabalho de jornalista-viajante. Não apenas por sua apoteose geológica inigualável e de tirar o fôlego, mas também por seu povo – os hunzakut, os baltistanis, os cashemires e os tibetanos.

As duas Caxemiras – a paquistanesa e a indiana – têm maioria muçulmana. Por onde quer que você vá, você se sente na Ásia Central, e não na Índia. A árida Aksai Chin é praticamente despovoada, com a exceção de postos militares esparsos. A Ladaque do Leste, em termos históricos e culturais, sempre fez parte do planalto tibetano. A população é budista e fala um dialeto tibetano semelhante ao do povo de Aksai Chin.

A Jogada de Modi

A disputa atual tem origem bem recente, datando de menos de um ano atrás. Foi em agosto de 2019 que o Hindutva – o governo hindu nacionalista e quase fascista liderado por Modi – revogou unilateralmente partes da constituição indiana que estabeleciam Jamu e Cashemira como uma região autônoma.

A Jamu e Cashemira islâmica – herdeira de uma longa tradição cultural e religiosa –  foi privada de um parlamento e de governo local, e separada de fato do Ladaque budista e de sua extremamente sensível fronteira com a China, ficando sob o controle direto de Nova Delhi.

Desde 1947, as características de J&C vem protegendo a região da imigração em massa de hindus. Isso agora acabou. O jogo agora, nos planos de Nova Delhi, é arquitetar uma mudança demográfica, fazendo que J&C passe de região de maioria muçulmana a região de maioria hindu.

E até mesmo isso talvez não seja o bastante. Na visão do Ministro do Interior Amit Shah, não apenas o que o Hindutva descreve como a Caxemira ocupada pelo Paquistão, mas também Aksai Chin, são parte de Jamu e Cashemira. Todo o vale da Cashemira é visto como fazendo parte da Índia.

É fácil imaginar como esse plano é recebido em Islamabad e Pequim.

Acrescente-se isso a importância estratégica do sistema do rio Indo, a principal fonte de água do Paquistão: ele nasce nas montanhas de Jamu e Caxemira. Não é de admirar, portanto que, para Islamabad, a totalidade da província deva pertencer ao Paquistão, e não à Índia.

Em tempos recentes, toda a Linha de Controle Real vem sendo palco de incessante atividade militar.

A Índia reformou o campo de pouso de Daulet Beg Oldie (DBO), localizado em uma antiga rota de comércio que cruza o Passo  de Karakoram, situado, o que é de importância fundamental, a apenas nove quilômetros de Aksai Chin. Acontece de esse ser o local exato onde a Índia se liga fisicamente a Xinjiang, e não ao Tibé.

Paralelamente, a Índia construiu a estrada Darbuk-Shayok-DBO, de 255 quilômetros de extensão. Aqui vai uma avaliação do que é inocentemente descrito como uma estrada de pista única na fronteira indo-chinesa. O que isso significa, na prática, é que Nova Delhi tem agora muito mais espaço de manobra para transportar tropas e equipamento militar através da Linha de Controle Real. Não é de admirar que Pequim tenha interpretado a iniciativa como mais uma pressão – indesejável – sobre Aksai Chin.

Enquanto a Índia construía essa nova estrada de acesso militar, ela ignorava por completo o fato de que os chineses já haviam concluído sua própria estrada em Aksai Chin: a rodovia 219, que liga o ultraestratégico Tibé a Xinjiang e, em seguida, à lendária Rodovia Karakoram – que começa em Kashgar, cruza a fronteira e desce serpenteando até Islamabad.

Uma importante parte de Aksai Chin foi de fato cedida por Islamabad à China em 1963, em troca de apoio financeiro e logístico.

Como seria de se esperar, houve um forte aumento do patrulhamento militar de ambos os lados. Neste momento, 225 mil soldados indianos estão concentrados às margens da Linha de Controle.   Um número desconhecido de soldados chineses muitíssimo bem equipados contrapõe-se às tropas indianas.  O jornal The Hindu mostrou imagens de satélite  da movimentação chinesa em Galwan, pouco antes do choque de tropas na fronteira. Nada menos que três sub-distritos militares chineses – subordinados às forças armadas do Tibé e de Xinjiang – participaram das escaramuças em Galwan.

É tudo por causa do CECP

A fronteira China-Paquistão na altura do Passo de Khunjerab, bem como toda a região imediatamente ao sul, o visualmente estarrecedor Gilgit-Baltistan, coincide exatamente com aquilo que os indianos chamam de Caxemira ocupada pelo Paquistão.

Não há a menor possibilidade de Pequim vir a permitir qualquer tipo de aventureirismo regional por parte de Nova Delhi. Muito especialmente porque essa é uma parte importante do território do Corredor Econômico China-Paquistão (CECP) – um dos principais nós das Novas Rotas da Seda, que segue até Islamabad e desce até o porto de Gwadar, no Oceano Índico.

Em um futuro próximo, Gwadar terá solidificado seus vínculos energéticos diretos com o Golfo Pérsico, e a China poderá chegar a ampliá-los mais ainda com a construção de um óleo-gasoduto indo até Xinjiang.

Contrapondo-se estrategicamente aos nós das Novas Rotas da Seda chinesas, encontramos o ambíguo papel desempenhado pela Índia tanto no Quad (juntamente com os Estados Unidos, o Japão e a Austrália) quanto no esquema “Indo-Pacífico” dos Estados Unidos que, em essência, é um mecanismo visando à contenção da China.

Na prática, e em nome de sua autodescrita “autonomia estratégica”, Nova Delhi não é membro pleno do Quad. O Quad é um conceito tão nebuloso que nem mesmo o Japão e a Austrália parecem exatamente entusiasmados.

Os “vínculos” de defesa Estados Unidos-Índia são muitos – mas sem nada de realmente significativo, com a exceção da jogada autodestrutiva de Nova Delhi de cortar suas importações de petróleo iraniano. Para aplacar Washington, Nova Delhi prejudicou prodigiosamente seus próprios investimentos no porto de Chabahar — a apenas 80 quilômetros de Gwadar — que até recentemente era louvado como sendo o portão das Novas Rotas da Seda para o Afeganistão e a Ásia Central.

Fora isso, tudo o que encontramos são, como seria previsível, ameaças: o governo Trump está furioso por Nova Delhi estar comprando sistemas de mísseis S-400 da Rússia.

Autossuficiência ou contenção?

A China é o segundo maior parceiro comercial da Índia. Pequim importa cerca de cinco por cento de tudo o que é produzido na Índia, enquanto Nova Delhi importa menos que um por cento da produção chinesa.

Há apenas dois meses, em uma fala à nação sobre o Covid-19,  Modi insistiu em uma “Índia autossuficiente” e em uma globalização centrada no ser humano”, focada nas manufaturas locais, nos mercados locais e nas cadeias de fornecimento locais.

Apesar de toda a bazófia de Modi, o aventureirismo na política externa é incompatível com a tradição indiana de não-alinhamento, e desviaria boa parte do esforço necessário para a construção dessa “autossuficiência”.

Havia muita expectativa em torno de Índia e Paquistão virem a se tornar membros plenos da Organização de Cooperação de Xangai, o que ajudaria a neutralizar seus muitos problemas. Não foi isso que aconteceu. Mas a Organização de Cooperação de Xangai – juntamente com os BRICS – é o caminho a ser tomado caso a Índia realmente queira se tornar um ator importante no mundo multipolar que vem surgindo.

Pequim tem pleno conhecimento das estratégias imperiais de contenção/cerco. Há mais de 200 bases militares norte-americanas no Pacífico Ocidental. As Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cinturão e Rota, exibem nada menos que sete corredores de conectividade – inclusive a Rota da Seda Polar. Cinco delas são rotas terrestres. A única que inclui a Índia é a BCIM (Bangladesh- China-Índia-Mianmar).

Se a Índia quiser se retirar, a Iniciativa Cinturão e Rota continuará funcionando até Bangladesh. O mesmo se aplica à Parceria Econômica Regional Ampla (RCEP, em inglês) negociada entre 15 países asiático-pacíficos. Todos eles querem que a Índia permaneça. Nova Delhi teme paranoicamente que a abertura de seus mercados fará inchar o déficit comercial com a China. Com ou sem  Índia, o RCEP também continuará funcionando, assim como a Iniciativa Cinturão e Rota e o Corredor Econômico China-Paquistão.

Nas classes dominantes de casta alta, são muitos os hindus que não conseguem perceber que estão sendo vergonhosamente usados em tempo integral pelos senhores imperiais, a quem interessa criar uma frente de guerra com a China.

Mas Modi terá que entrar no jogo da realpolitik e se dar conta de que a Índia não é uma prioridade para Washington, e sim um peão na batalha de domínio de espectro total contra as “ameaças existenciais” representadas pela China, pela Rússia e pelo Irã, que são exatamente  os três grandes nós da integração eurasiana.

Washington continuará a tratar a Índia como um mero peão na campanha indo-pacífica visando à contenção da China. A Índia – em tese muito orgulhosa de sua independência diplomática – preferiria usar seus laços com os Estados Unidos para se contrapor ao poderio da China em todo o Sudeste Asiático, e também como forma de deter o Paquistão.

Modi, no entanto, não tem a menor condição de apostar pesado  na possibilidade de o governo Trump pensar da mesma forma. A única saída seria sentar-se à mesa de negociações e conversar com seu parceiro de BRICS, Xi, no mês que vem em São Petersburgo, e em novembro em Riad.

Tradução de Patricia Zimbres para o 247

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