Pepe Escobar: Entrelinhas da reunião Biden-Putin 4/4

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17/6/2021, Pepe Escobar, Asia Times

Comecemos pela palavra escrita.

Em Genebra, EUA e Rússia distribuíram declaração conjunta na qual reafirmam “o princípio de que guerra nuclear não tem vencedor e não deve existir.”

Doutores Fantásticos os mais variados terão calafrios – mas pelo menos o mundo já tem uma declaração por escrito, e pode suspirar de alívio ante tal virada do destino. Não significa que um complexo industrial-militar norte-americano “incapaz para acordos” cumprirá o que assinou.

Moscou e Washington também se comprometeram a, em futuro próximo, engajar-se num “Diálogo sobre Estabilidade Estratégica” bilateral, deliberado e robusto. O diabo que vive nos detalhes vive, nesse caso, nesse “futuro próximo” não especificado para a continuação do diálogo.

Um primeiro passo é que os embaixadores já estão voltando às respectivas capitais. Putin confirmou que o Ministério de Relações Exteriores da Rússia e o Departamento de Estado “iniciarão consultas”, depois de o novo START-3 (Strategic Arms Reduction Treaty, Tratado para a Redução de Armas Estratégicas 3) ter sido prorrogado por cinco anos.

Igualmente importante é o verdadeiro Rosebud dessa vez em Genebra: o protocolo Minsk. Foi um dos motivos chaves pelos quais a Casa Branca, sim, solicitou a reunião ao Kremlin – porque é o que aconteceu, não o contrário.

O establishment nos EUA foi sacudido pela violência do confronto militar no território russo contíguo ao Donbass – que foi resposta às provocações de Kiev (Putin: “Fizemos exercícios em nosso território, mas não arrastamos equipamento e armas para a fronteira dos EUA”).

A mensagem foi devidamente entendida. Parece haver uma mudança de postura dos EUA sobre a Ucrânia – implicando que o protocolo Minsk volta a ser considerado.

Mas tudo pode – mais uma vez – não passar de jogo de sombras. Biden disse: “Concordamos em manter a diplomacia relacionada ao acordo de Minsk.”

“Manter a diplomacia” não significa necessariamente observar estritamente um acordo já endossado pelo Conselho de Segurança da ONU, e que Kiev desrespeita em tempo integral. Mas pelo menos implica diplomacia.

Leitura benevolente revelaria que algumas linhas vermelhas começam a ser, afinal, compreendidas. Putin até aludiu a elas: “De modo geral, é claro para nós o tema de que falam nossos parceiros norte-americanos; e eles compreendem o que dizemos no que tenha a ver com as ‘linhas vermelhas’. Mas devo dizer francamente que ainda não chegamos ao ponto de demarcar as ênfases em detalhe e de distribuir e partilhar qualquer coisa.”

Vale dizer: sem detalhes – pelo menos, até aqui.

Entregou o jogo

Falando antes de embarcar no Air Force One para partir de Genebra, um Joe Biden relaxado entregou o jogo – com aquele modo de se autoenganar que é como sua marca registrada.

Biden disse “A Rússia está nesse momento num ponto muito, muito difícil. Está sendo apertada pela China. E quer desesperadamente continuar grande potência.”

A frase revela curioso mix de conhecimento zero da complexa parceria estratégica ampla Rússia-China, sempre em evolução, de um lado; e, de outro, o que não passa de pensamento desejante (“apertada pela China”; “quer desesperadamente continuar grande potência”).

Rússia é grande potência de facto. Mas a visão de Putin, de completa soberania russa, só pode florescer em verdadeiro mundo multipolar coordenado por Concerto de Soberanos: equilíbrio entre poderes baseado em realpolitik.

Está em agudo contraste com a unipolaridade que o hegemon privilegia; o establishment norte-americano toma como inimigo jurado qualquer player político que clame por soberania e multipolaridade.

Essa dissonância cognitiva com certeza não foi superada por qualquer coisa que Putin, Biden e suas grandes equipes tenham discutido na Villa La Grange.

Muito iluminador reviver o arco de Anchorage até Genebra – cuja crônica tenho feito para Asia Times nos últimos três meses (em port., aqui). No Alaska, a China, jogada em ambiente imundo e recebida com insultos à mesa diplomática – e respondeu em regra, pela palavra do formidável Yang Jiechi. Compare-se isso ao cerimonial à moda Hollywood, em Genebra.

A diferença de tratamento dado à China e à Rússia mais uma vez entregou o jogo.

As elites governantes nos EUA estão totalmente paralisadas pela parceria estratégica Rússia-China. Mas o derradeiro pesadelo é que Berlin logo compreenda que, mais uma vez, é usada como bucha de canhão – como se viu claramente, ao longo da saga do gasoduto Nord Stream 2. 

Berlim pode vir a ser empurrada para a mais completa aliança eurasiana, com Rússia-China. A Carta Atlântica recentemente assinada sugere que o cenário ideal para os anglo-norte-americanos – fantasmas da 2ª Guerra Mundial – é ter Alemanha e Rússia como inimigos irreconciliáveis.

Daí que o principal objetivo dos EUA naquela estranha foto (AFP/EyePress) de Putin-Biden (o meio sorriso de Putin, e Biden com o olhar perdido à distância) tenha sido induzir Putin a pensar que Washington deseja que a Rússia “volte ao rebanho”, afastando Moscou de Pequim e evitando a tríplice aliança com Berlin.  

E a estabilidade regional?

Não houve vazamentos substanciais de Genebra – pelo menos, até agora. Não sabemos se Lavrov e Blinken chegaram a falar, quando só os quatro – mais os intérpretes – reuniram-se na biblioteca.

Na reunião geral, aquela conhecida distribuidora de sanduichinhos na praça Maidan, Victoria ‘F*da-se a União Europeia’ Nuland, ganhou lugar à mesa. Pode implicar que mesmo se EUA-Rússia concordarem sobre estabilidade nuclear, a estabilidade regional continua fora de discussão (Putin: “O que haveria de ‘estável’ em apoiar um golpe na Ucrânia?”)

Biden referiu-se vagamente a EUA e Rússia virem a trabalhar juntos em ajuda humanitária à Síria. Foi código para “Idlib” – onde a Turquia da OTAN apoia ativamente jihadistas do tipo al-Nusra. Nem uma palavra sobre a ocupação ilegal de território sírio, por norte-americanos –ocupação que é complementada com contrabando de petróleo; nem sobre o fato de que a verdadeira crise humanitária na Síria é resultado direto das sanções impostas pelos EUA.

Nada disso foi objeto de perguntas nas duas conferências de imprensa. Uma palavrinha rápida sobre o Irã, outra palavrinha rápida sobre o Afeganistão e nada, nem menção rápida, a Gaza.

Putin, com pleno comando dos fatos e insistindo na lógica, foi claramente conciliador, com ênfase em sem hostilidadee disposição nos dois lados para mútua compreensão”. Biden, diga-se a seu favor, declarou que os desacordos não foram discutidos em “atmosfera hiperbólica” e que sua “agenda” não está dirigida contra a Rússia.

Putin foi extremamente detalhista ao explicar como a Rússia está “restaurando infraestrutura perdida” no Ártico. Está “profundamente convencido” de que EUA e Rússia devem cooperar no Ártico.

Quanto à cibersegurança, afirmou que Moscou sempre forneceu toda a informação que os EUA solicitaram sobre ciberataques, mas nunca recebeu qualquer resposta dos norte-americanos. Enfatizou que a maioria dos ciberataques têm origem nos EUA.

Sobre Direitos Humanos: “Guantánamo permanece ativada, em desrespeito a toda e qualquer legislação internacional”. E “houve tortura em prisões norte-americanas, inclusive na Europa.”

Muito importante: as guerras das vacinas foram tratadasrapidamente”, e evocou-se a “possibilidade” de reconhecimento mútuo das vacinas.

Para os registros: a mídia norte-americana dominante foi convidada para a conferência de imprensa de Putine sentiu-se livre para fazer “perguntas” acusatórias, fiel ao roteiro do “comportamento de pária, do Kremlin”; mas a mídia russa foi proibida de participar da conferência de imprensa de Biden.

Em resumo: usar a regra de Kissinger, de Dividir para Governar, e tentar meter uma cunha na relação Rússia-China, é ideia que já chega morta ao destino, quando se lida com players ultraescolados como Putin e Lavrov.

Em sua conferência de imprensa, Putin disse que “não tenho ilusões, e não se pode ter ilusões”. Mais tarde, Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin, foi perguntado se Genebra levaria os russos a retirar os EUA da lista de Nações Não-amigas da Rússia: “Não… Ainda não há fundamento para isso.”

Apesar de tudo, há lampejos de esperança. Já houve eventos geopolíticos mais estranhos. Se os belicistas forem postos de lado, 2021 pode até acabar como o Ano da Estabilidade Estratégica.*******

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