Os “filhos das bombas e o “choque de civilizações”

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Do Jornal digital: MSIa Informa 15 agosto 2014

Quando, na década de 1990, o professor Samuel Huntington lançou a sua tese do “choque de civilizações”, era apenas uma elaboração teórica de uma estratégia para substituir a confrontação ideológica da Guerra Fria por um conflito de longo prazo e caráter religioso, étnico e sectário. Ao longo de duas décadas e, especialmente, após os ataques de 11 de setembro de 2001, o Tripoli1Establishment anglo-americano garantiu as condições para o surgimento de tais tipos de conflito, como se pode contemplar com a irrupção do tenebroso Estado Islâmico do Iraque e do Levante, renomeado Estado Islâmico (EI, ex-ISIL).

Em um sentido literal, pode-se afirmar que o EI-ISIL é constituído pelos “filhos das bombas” lançadas sobre um número crescente de populações muçulmanas pelas Forças Armadas dos EUA, em sua cruzada “contra o terror”. As invasões do Afeganistão e do Iraque tiveram o efeito de destruir quaisquer vestígios de Estados seculares e abriram as portas ao radicalismo sectário, que, em paralelo, colocou em risco as comunidades das minorias religiosas, principalmente, as cristãs, que se alinhavam entre as mais antigas do mundo. Agora, ataques aéreos à criatura de Frankenstein criada por tal estratégia, além de inócuos para conter o seu avanço, não contribuirão em nada para reverter o ódio entre a população islâmica perturbada pela violência, que a leva a confundir o agressivo militarismo anglo-americano (e, eventualmente, francês) com um marco distintivo da civilização cristã ocidental.

A violência na grande região do Oriente Médio não poderá ser superada por meios militares – muito ao contrário, empregados isoladamente, estes apenas a agravam. A desintegração descontrolada do Iraque não será impedida pela Força Aérea ou o Exército dos EUA, independentemente do número de aviões e soldados que enviem ao país. Tais medidas tendem, apenas, a aprofundar as condições caóticas que estão ensejando uma redefinição do mapa político da região e, possivelmente, a escalar o conflito a proporções apocalípticas.

Por outro lado, a decisão de desfechar ataques aéreos contra forças do EI, sob o pretexto de romper o cerco dos terroristas islamistas aos fugitivos da minoria religiosa yazidi, cercados por eles em uma área no norte do Iraque, demonstra a presteza com que os círculos mais belicistas de Washington aproveitam as oportunidades criadas pelos desdobramentos da sua agenda hegemônica, ainda que não tenham planejado cada aspecto dela.

O anúncio dos ataques, feito pelo presidente Barack Obama, na noite da quinta-feira 7 de agosto (antes de deixar a capital para três semanas de férias), dispensou qualquer consulta ao Congresso, que, em tese, necessita autorizar o emprego da força militar – como se viu em agosto do ano passado, quando Obama recuou da intenção de ordenar um ataque à Síria sem o aval do Capitólio.

Não obstante, na véspera, em uma demonstração do modus operandi das forças relevantes na capital estadunidense, o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), um dos mais prestigiosos think-tanks do Establishment, publicou em seu sítio um longo artigo de Anthony H. Cordesman, com o sugestivo título “Iraque: hora de agir”, oferecendo uma detalhada pauta de ações para lidar com o EI, inclusive, ações militares “limitadas”. “Existem momentos – embora o presidente Obama pareça ter problemas em entender este ponto – que não favorecem aos que ficam esperando parados”, fustigou ele.

No ainda mais influente Conselho de Relações Exteriores (CFR) de Nova York, o presidente Richard Haass não apenas apoia os ataques, como diz que eles deveriam prosseguir: “Os EUA deveriam efetuar ataques sustentados contra o ISIL, tanto no Iraque como na Síria. A fronteira é irrelevante (sic); o que é essencial é que o ISIL seja retardado e enfraquecido (CFR, 12/08/2014).”

Adiante, ele explicita o “pragmatismo” e o cinismo característicos da classe, com sugestões que mais parecem instruções, envolvidas por um maldisfarçado desprezo por Obama, a quem ele e seus pares consideram um presidente pouco disposto a exercer as prerrogativas do “excepcionalismo” estadunidense:

Acima de tudo, o Sr. Obama… deve explicar por que o isolacionismo não faz mais sentido, hoje, do que em outras épocas da moderna história dos EUA. Um curso de ação ao longo das linhas sugeridas aqui não repetirá questionáveis tentativas de construção de nações. Não irá requerer tropas de terra. Em vez disto, usará o poder aéreo para o que ele é desenhado para fazer: enfraquecer um adversário e forçá-lo à defensiva. Outros, incluindo os curdos e os iraquianos, precisarão proporcionar as forças terrestres.

O Sr. Obama e os que o cercam devem, também, repensar o papel estadunidense. Eles tendem a exagerar os custos e riscos da ação e descontar os da inação. Sim, a guerra do Iraque, em 2003, foi uma guerra de escolha mal executada. Mas foi, igualmente, mal pensado o fato de não se ter pressionado mais para que as tropas estadunidenses permanecessem. (…)

A seletividade da intervenção estadunidense foi criticada pelo patriarca caldeu de Babilônia, Louis Raphael I Sako, que considerou “desconcertante” a decisão de defender apenas o território curdo do ataque do EI, deixando de lado Mosul e outras áreas conquistadas pelo grupo. Da mesma forma, ele lamentou as disputas políticas no governo iraquiano: “Enquanto o país está sob ataque, os políticos continuam lutando para conquistar o poder (Zenit.org, 12/08/2014).”

Apesar de as próprias lideranças militares afirmarem a inutilidade dos ataques aéreos para o combate às forças do EI, Obama já afirmou que o esforço poderá ser “longo”. Ao mesmo tempo, Londres também anunciava a intenção de enviar aviões militares para a região conflagrada, para missões de reconhecimento – as quais, no entanto, poderiam ser rapidamente convertidas em missões ofensivas, já que os aviões envolvidos seriam os eficientes caça-bombardeiros Tornado, usados tanto na campanha iraquiana de 1991 como na de 2003. E até mesmo o emprego de tropas terrestres não está descartado, como anunciou o vice-conselheiro de Segurança Nacional Benjamin Rhodes, na quarta-feira 13 de agosto, com a questionável ressalva de que o seu uso se limitaria a uma operação de resgate dos yazidis encurralados (New York Times, 13/08/2014).

De fato, os ataques lograram apenas retardar momentaneamente as investidas do EI contra os yazidis e os curdos, para cuja região autônoma tem fugido grande parte dos habitantes das cidades atacadas e ocupadas pelos islamistas. Por ironia, parte do equipamento destruído nos ataques era de origem estadunidense, uma fração das vastas quantidades de material de uso militar que haviam sido entregues a grupos da oposição ao presidente sírio Bashar al-Assad, ambiente no qual o EI foi fermentado, cresceu e continua crescendo, na medida em que grandes números de ex-integrantes daqueles grupos têm se unido a ele.

Ademais, uma considerável fração dos combatentes mobilizados contra Assad foi “importada” da Líbia, juntamente com boa parte das suas armas e equipamentos, após a investida que resultou na deposição e assassinato do líder Muamar Kadafi, em 2011.

O EI é mais um rebento bastardo da agenda hegemônica de Washington e Londres, cujo objetivo mais amplo parece ser o de manter toda a grande região do Oriente Médio em um estado de convulsões permanentes, no contexto da estratégia do “choque de civilizações”.

Na criação do EI, o eixo anglo-americano contou com a colaboração direta dos seus aliados na região, como a Turquia, Arábia Saudita e Catar, mas, agora, até mesmo estes últimos começam a perceber que ajudaram a parir um monstro incontrolável. Por isso, em algum momento, uma dose de realismo terá que se impor para um esforço voltado para a sua neutralização, empenho que exigirá, entre outros itens, o abandono de qualquer pretensão hegemônica externa à região e um entendimento político inusitado entre governos e organizações com agendas diversas e, com frequência, conflitantes. Para tanto, será imprescindível a garantia da estabilidade dos governos da Síria e do Irã, cujas forças militares são as únicas em condições de oferecer uma oposição armada efetiva às hordas do EI, em cooperação com o grupo libanês Hisbolá e a milícia curda Peshmerga. E o governo da Turquia teria que prover um requisito básico, fechando as fronteiras do país à circulação de militantes dos grupos opositores do regime de Damasco.

Ou seja, a saída não virá com a persistência da visão do mundo “excepcionalista” favorecida pelas elites hegemônicas anglo-americanas, baseada num fundamentalismo religioso calvinista de predeterminação divina – cujos vínculos com o cristianismo são apenas nominais -, e que somente pode ser neutralizada com um autêntico diálogo de civilizações baseado na concórdia e no perdão – princípio consolidado no histórico Tratado de Westfalia de 1648, que encerrou a sangrenta Guerra dos 30 Anos.

Hoje, tal cenário se assemelha a um wishful thinking, mas é possível que, nas próximas semanas e meses, as atrocidades cometidas pelos fanáticos do EI se acumulem ao ponto de sensibilizar as opiniões públicas e os governos das capitais relevantes, para um entendimento que, eventualmente, o viabilize.

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