O que aconteceu ante-ontem (15/7/16) na Turquia?

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   Os noticiários do mundo todo ante-ontem foram abalados pela tentativa de um golpe militar contra o presidente turco Recep Tayyip Erdogan. Levantavam-se, então, diversas hipóteses sobre o acontecido. Comentaristas e “experts” tratavam de opinar ,de maneira imediata, a cada nova notícia que nos era enviada pela mídia estrangeira. Tratarei de expor uma breve leitura acerca do ocorrido, analisar a atual condição da Turquia e também abordar como o frustrado golpe pode ser entendido historicamente.

 

July 17, 2016

Autor: Samuel Campos

Fonte: http://categorizando.wix.com/inicio#!O-que-aconteceu-anteontem-15716-na-Turquia/cjds/578985ce0cf2e258337c7647

     Aqueles dramáticos eventos que sacudiram as ruas de Istambul e Ancara no dia 15, no entanto,  não podem ser vistos como “isolados” ou “exclusivos”. A Turquia tem um histórico de golpes militares. Até os anos 80, os alvos eram aqueles governos mais ou menos independentes do imperialismo e com algum viés de esquerda. Desde então, os alvos seriam os partidos fundamentalistas islâmicos, como o do próprio Erdogan. Se tivesse sido bem sucedido, o golpe kemalista de ante-ontem teria sido o 5º efetivado, desde 1960.

Os setores protagonistas do escarcéu  são conhecidos como “Seguidores de Kemal Atatürk”, ou “kemalistas”, surgidos com a derrota do Império Otomano na I Guerra Mundial. Em sua gênese, esse movimento procurava criar um Estado-Nação moderno, democrático e secular, guiado pelos progressos educacional e científico, fundamentados sobre os princípios do positivismo, racionalismo e do Iluminismo, e, portanto, a separação do Estado da religião.

                                                                  Kemal Atatürk

     Ocorre que, desde os anos 90, o fundamentalismo islâmico tem crescido em apoio. Com presença no judiciário, nas forças armadas e na burocracia estatal, os kemalistas passaram a contra-atacar por exemplo, banindo os partidos religiosos, quando cresciam demasiadamente. Porém, isso não impediu o crescimento de alguns deles, até que, no início deste século, o partido de Erdogan, AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento), teve sucessivas vitórias eleitorais.

A ambição de entrar na União Europeia (UE) por parte da Turquia, fez com que os militares se segurassem para não intervir e derrubar o AKP do poder. Foi nesse momento que Erdogan se aproveitou para interferir no judiciário e nas forças armadas, colocando figuras aliadas dos fundamentalistas. A derrota do movimento de sexta-feira é o bem-sucedido resultado dessa política.

                                                             Imagem de Ancara

     Sabe-se também que ao notar o desdém da UE em relação à Turquia, o presidente Erdogan passou a buscar hegemonia política no Oriente Médio. Foi quando criou conflitos com Israel, apoiou a Irmandade Islâmica, no Egito, e resolveu ajudar a derrubar Assad, na Síria. E esta última ação foi retribuída de imediato, quando o presidente Barack Obama pediu para que todos os partidos turcos apoiassem o governo contra a tomada do poder.[1]

    É necessário também analisarmos brevemente o partido no poder. O AKP é um partido conservador e neoliberal. Economicamente e socialmente, é péssimo para os trabalhadores turcos. Mas o partido tem uma rede de caridade islâmica, que lhe cria clientes. Ao mesmo tempo em que usa de uma agressiva retórica religiosa (como fazem, aqui no Brasil, alguns pastores evangélicos). Os retrocessos ficam, então, evidentes: Em maio de 2012, desafiou-se os direitos das mulheres de abortarem e praticarem cesariana para dar à luz, proclamando reiteradamente que as mulheres “deveriam ter no mínimo três filhos”.[2] Em 2013, houve a suspensão da proibição do uso de véu islâmico no funcionalismo público, que era lei desde 1925![3]  Poderíamos citar também a privatização maciça de empresas estatais, além da decisão de converter o único espaço verde no centro de Istambul em um centro comercial e um luxuoso complexo de apartamentos.[4]

    Tendo esses aspectos explicitados, podemos avançar às questões, acredito eu, principais para um texto que queira apresentar hipóteses embasadas: “Por que o golpe de ontem não vingou?”; “Erdogan pode ter, realmente, orquestrado isso tudo?”; Quais seriam as implicações, para os sírios e curdos, de um golpe efetivado?”.

                                                        Recep Tayyip Erdogan: O fantoche perfeito para as investidas do ISIS

    Para responder a primeira pergunta, devemos analisar como os kemalistas estão dispostos no aparato estatal turco, isto é, se constituem uma maioria e se têm capacidade para levar em frente um golpe de Estado. A informação de que o principal partido da oposição, CHP (Partido Democrático Popular), está contra o golpe talvez sele a questão. O golpe foi de um grupo, aparentemente, isolado da comunidade dos Seguidores de Atatürk. O líder do CHP, Kemal Kilicdaroglu, que foi recentemente multado por ofender o presidente [5], pediu para que seus partidários saíssem às ruas contra o golpe. Dentro de algumas horas começou a desintegrar-se o movimento golpista. Em todos os lugares os soldados começaram a recuar em face dos protestos agressivos e mensagens de altos funcionários no serviço militar em apoio ao presidente.

                                                                 Apoiadores de Erdogan tomaram tanques na defesa do líder

      A questão sabiamente levantada por alguns conhecedores da história Turca, ainda dentro da primeira pergunta, foi a seguinte: “O exército turco não é estranho a golpes. Por quais motivos, então, este em particular foi infantilmente planejado e preparado, sendo derrotado poucos momentos depois?”. Alicerço esta pergunta com outras mais instigantes, isto é, como um golpe dessa magnitude deixa livres as figuras de maior destaque? Erdogan, juntamente com todos os quadros do AKP, chefes de polícia e outros adeptos do regime permaneceram livres e seus escritórios mais ou menos intactos. Um funcionário do AKP disse que seu escritório foi invadido e ele foi simplesmente “questionado” a se render. É evidente que ele não se rendeu e claramente não foram tomadas quaisquer outras medidas contra ele.

Como podemos ver, a estrutura do golpe não era tão sofisticada quanto se pensava. É então muito improvável o serviço de Inteligência Turco (MIT – Turkish Intelligence), que já em 2007 havia descoberto e desmantelado uma articulação golpista, não saber desse último ridículo esquema. Mas por que, então, permitiu que a tentativa prosseguisse, causando a morte de 265 pessoas? [6]

     São essas questões que deságuam no seguinte comentário vindo da Turquia, e amplamente compartilhado no Twitter:

“Muito provavelmente uma tentativa real de golpe, que foi vagamente conhecida de antemão, e foi autorizada a continuar, porque eles sabiam que ele seria desorganizada e fraca. Isso significa que será seguido por um golpe real pelo próprio Erdogan, e os últimos vestígios de democracia serão perdidos. Então, o que já era ruim piorará. O movimento curdo e todos nós da oposição seremos alvos nos próximos dias.[…]”

     O comentário acima se torna mais verdadeiro ao sabermos que Erdogan já se prepara para desmantelar o Poder Judiciário, suspendendo mais de 2.700 juízes de seu cargo [7]. A tentativa fracassada foi o pretexto perfeito para o presidente turco conseguir mais popularidade e apelo populacional, além de tornar mais fácil a ‘limpeza’ dos inimigos do fundamentalismo islâmico dentro das forças armadas.[8]

                                                   “Golpe na Turquia? Fato ou ficção?”

     Uma coisa é certa, contudo: não podemos duvidar de métodos como esse por parte de Erdogan, que já usou de negociações de paz com o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) para, por de ‘baixo dos panos’, articular com o exército uma emboscada, reprimindo os curdos quando menos esperassem.[9]

      A terceira questão foi rapidamente respondida pelos sírios em Homs e Damascus, que no mínimo sinal de esperança comemoraram:

           Por fim, antecipo que os acontecimentos que chocaram o mundo vão significar, sem dúvidas, uma maior intensificação da ‘caça às bruxas’ contra qualquer oposição, em particular os ativistas de esquerda e sindicatos. Erdogan já trabalha, por exemplo, para que os EUA extraditem Fethullah Gülen (que mora na Pensilvânia desde 2008), cujo movimento neo-islâmico já foi seu aliado no primeiro período do governo [10], e agora é acusado de ter operado com os norte-americanos o levante armado.[11] Demonstra-se, portanto, mais uma vez, que a única saída é construir um movimento político da classe trabalhadora que desafie o próprio sistema e ofereça à poderosa classe trabalhadora turca (além da classe síria e curda) uma alternativa realmente popular, alheia ao populismo moralista e religioso de Recep Erdogan.

[1]https://noticias.terra.com.br/mundo/estados-unidos/obama-pede-que-todos-os-partidos-da-turquia-apoiem-governo-de-erdogan,fdf89085c8a7e9c4247b10790691a2ef94bvtgjd.html

[2]http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/06/milhares-protestam-na-turquia-contra-mudancas-em-lei-do-aborto-1.html

[3]http://oglobo.globo.com/mundo/turquia-suspende-proibicao-ao-uso-do-veu-islamico-no-funcionalismo-publico-10304449

[4]http://www.diarioliberdade.org/mundo/reportagens/39433-turquia-neoliberalismo-excessivo-amea%C3%A7a-a-%E2%80%9Cpaz-em-casa%E2%80%9D.html

https://youtu.be/d0Uwh971f6w (documentário da VICE sobre a zona verde em Istambul)

[5]http://vozdaturquia.com/politica/2016/07/14/lider-chp-multado-insultar-erdogan/

[6]http://revistaopera.com.br/index.php/2016/07/16/turquia-265-mortos-e-mais-de-2800-presos-em-tentativa-de-golpe/

[7]http://www.eldiario.es/internacional/Golpe-Turquia_13_538026193_7388.html

[8]https://www.orientemidia.org/erdogan-prometeu-limpeza-e-prisoes-no-exercito/?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook&utm_campaign=erdogan-prometeu-limpeza-e-prisoes-no-exercito

[9http://www.marxist.com/turkey-qsloppy-coupq-serves-as-temporary-lifeline-for-erdoan.htm

[10]http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/44713/turquia+erdogan+exige+que+eua+extraditem+fethullah+gulen+a+quem+acusa+de+tentar+golpe.shtml

[11]http://resistir.info/turquia/bhadrakumar_16jul16.html

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