Islã e islamismo nos conflitos atuais 2

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Por Fedra Rodríguez Hinojosa*

Em 2012, o escritor argelino Boualem Sansal publicou um artigo no site Qantara-Deutsche Welle, cujo eixo central consistia no debate sobre os possíveis desdobramentos da Primavera Árabe, em particular, a queda de governos vigentes e sua substituição por  “democracias”. Sansal foi categórico em sua previsão: a preponderância do islamismo, além de perigosa, parece incoerente, já que as multidões que foram às ruas pediam o exercício da soberania pelo povo, um elemento que não poderia fazer parte das medidas adotadas por partidos extremistas, considerando suas prédicas. E o vaticínio do escritor chega ao âmbito econômico, social e político: o setor informal seria estimulado, a situação de cristãos e intelectuais, assim como as relações internacionais, estaria marcada pela violência, e, finalmente, a identidade muçulmana radical se colocaria no centro das agendas políticas, sufocando qualquer outra ideologia.

Hoje, em 2014, recentes notícias parecem dar razão às ideias de Boualem Sansal: militantes do braço da Al-Qaeda do Iraque (o grupo ISIL, ou Islamic State of Iraq and the Levant) têm cometido atrocidades como decapitações e até canibalismo contra os defensores do governo de Bashar al-Assad na Síria. Do mesmo modo, praticantes de outras religiões, especialmente cristãos, bem como médicos e profissionais da saúde têm sido alvos constantes das ações da Jabhat Al-Nusra, outra afiliada da Al-Qaeda. Nesse cenário, o desejo de expulsar Bashar al-Assad do poder na Síria, contando com o apoio de grupos fundamentalistas islâmicos, parece sair de nossa compreensão, pois a incongruência torna-se flagrante.

Contudo, para atingir o cerne da questão e assimilar a problemática subjacente aos movimentos extremistas no contexto da Primavera Árabe e dos conflitos que se estendem até o presente, é necessário realizar uma análise detalhada do islamismo, um fenômeno multifacetado, dinâmico e, portanto, muito distante do imaginário ocidental, que o concebe como algo monolítico, unificado. A partir desse olhar abrangente, a possibilidade de apreender o motivo da influência do islamismo sobre opositores do governo e civis não islamistas deixa de ser uma proposta alijada e inviável.

A ONG International Crisis Group realizou em 2005 um mapeamento pormenorizado das características e objetivos dos principais grupos extremistas, e, embora a data de publicação do relatório não seja muito recente, este trabalho ainda é pertinente e até mesmo atual, já que o perfil de tais grupos pouco mudou. O artigo da ICG, num esforço para afastar visões simplistas ou palpites generalistas, propõe que nosso ponto de partida para o estudo do tema seja a discussão de um problema terminológico: o uso dos termos islã e islamismo, frequentemente equívoco. Islã é a fé que move mais de um bilhão de adeptos que seguem as crenças e práticas estabelecidas pelo Profeta Maomé. O islamismo é sua face política e ideológica, que envolve diversos setores da sociedade e coloca em xeque os valores sociais vigentes, não raramente de forma violenta. O uso dos termos não é recente, mas a diferenciação clara entre eles se deu com a Revolução Iraniana de 1979, época em que o vocábulo “fundamentalismo” também ganhou o espaço sociolinguístico. Como consequência, o uso errôneo dos termos “islã”, “islamismo” e “fundamentalismo” repete-se de forma quase constante, agravando o preconceito contra os praticantes da religião e incorporando em uma só figura o crente islâmico e o islamista.

Após a discussão sobre terminologia, nossos esforços devem dirigir-se pontualmente ao debate sobre o islamismo, ou ativismo islamista de cunho político, já que atua como o catalisador das manifestações, eleições e moções da Primavera Árabe e das crises atuais, ao mesmo tempo em que seu destaque nos parece contraditório diante do clamor das massas por liberdade e democracia plenas.

O islamismo, especialmente dentro do ativismo sunita, não tem uma única face, mas diversas nuances e subcorrentes, apoiada em diferentes bases, não somente a religiosa. Tampouco seu desenvolvimento foi totalmente completado; seu caráter é dinâmico e em constante modificação, quase sempre de acordo com as novas demandas dos países árabes e avaliando cada medida tomada pelos órgãos internacionais, como num acirrado jogo de xadrez.

Assim, ainda que possua distintas facetas, alguns pontos em comum permitem sua classificação e, portanto, um meio de facilitar nosso entendimento acerca de cada um dos movimentos radicais islamistas. O ICG sugere a divisão do islamismo em três categorias: a) islamismo político, cujas ações, em geral menos violentas, estão voltadas para o Estado e suas instituições e têm prioridade sobre o proselitismo religioso, como por exemplo, a Irmandade Muçulmana, o PJD do Marrocos e o AKP da Turquia; b) ativismo missionário, de fundo revivalista e fundamentalista, não possui tanto interesse político quanto religioso, um exemplo claro é o grupo Tablighi da Índia; c) jihadismo, marcado pela violência exacerbada, defesa militar e expansão ideológica e territorial; o mais conhecido representante desta ordem é a Al-Qaeda e seus braços espalhados por diversos pontos do Oriente Médio e Maghreb.

A partir desta classificação, indiscutivelmente sintética diante da quantidade de variantes envolvidas e até das disputas entre as vertentes em questão, sugiro agora, como num processo de pirâmide invertida, chegarmos ao ponto nevrálgico da questão, principalmente no que diz respeito à crise na Síria: a análise não apenas da presença marcante do jihadismo no processo de revolta contra o governo de Bashar al-Assad, mas o motivo pelo qual jovens e civis não adeptos do ativismo islamista acabam envolvendo-se com milícias da Al-Qaeda e outros grupos.

Khalil al-Anani, da Universidade de Durham, em artigo publicado no Mediterranean Yearbook, em 2013, buscava responder a pergunta mais óbvia que surge quando observamos a guerra civil na Síria: partidos extremistas poderiam preencher as expectativas dos opositores de al-Assad? E suas medidas políticas, econômicas e sociais tenderiam à formação de um Estado democrático e moderno?

Para responder estas dúvidas, al-Anani examina primeiramente a postura dos grupos islamistas antes da Primavera Árabe: realizaram alianças com forças seculares e liberais, ainda que totalmente contrárias a seus próprios conceitos (lembremos dos takfiris e suas acusações de apostasia), fomentaram o desencantamento dos mais pobres, e improvisaram meios de obtenção de ganhos políticos. Em outras palavras, aproveitaram o descontentamento dos mais humildes para aumentar seu impacto social, advogando pela remodelação de estruturas políticas e sociais em vigor, e atraindo muitos com seus discursos que fundiam religião e ações militares. Tais estratégias inflamaram ânimos e resultaram no engajamento de jovens em milícias da Al-Qaeda, Front Al-Nusra, entre outros grupos, abrindo ainda mais as fendas que recortam o Oriente Médio.

Ao concluir seu artigo, al-Anani afirma que mesmo colocando gasolina no fogo para uma possível subida ao poder, os partidos extremistas têm diversas fraquezas: nos últimos dois anos demonstraram disparidades entre discursos, agendas e plataformas, o que, por sua vez, evidencia falta de preparo político. Em segundo lugar, possuem capacidade limitada e pouca aptidão para dirigir países após as revoluções, um defeito que tem origem no hábito de dominar a cena política por completo (portanto, um defeito de fundo notadamente antidemocrático), excluindo outras forças que poderiam ser aliadas e colaboradoras nos processos de transição e de reconstrução das nações.

O conjunto desses fatores sublinha a incapacidade de partidos islamistas, com o suporte de diversos subgrupos extremistas, de fornecer soluções viáveis para os problemas socioeconômicos que devastam os países do mundo árabe. Além disso, a falta de credibilidade de muitos desses partidos dificulta ainda mais sua consolidação no poder, de forma que, caso isso se tornasse realidade em países como a Síria, só restaria esperar a concretização da “profecia” de Boualem Sansal: o sonho da democracia esfacelado.

*Doutora em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade de Sevilha, Espanha, Fedra Rodríguez Hinojosa atua como tradutora, redatora, revisora e pesquisadora acadêmica no campo da Literatura e Cultura Árabe. Integra o corpo editorial e a equipe de pareceristas de revistas e sites como a Catalysta Ed., de Nova York, USA e a African Studies Review, da Universidade de Massachusetts, USA.

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2 thoughts on “Islã e islamismo nos conflitos atuais

  1. Responder Judeu Hipólito fev 5,2014 14:11

    Comentário sobre o artigo ISLÃ E ISLAMISMO NOS CONFLITOS ATUAIS

    A análise sobre a situação na Síria não pode ser feita a partir de uma guerra civil que não existe. O que o país enfrenta desde 2011 é uma agressão externa, cujos principais responsáveis são os Estados Unidos, a União Europeia – com particular envolvimento da Inglaterra, França, Alemanha, Itália e Espanha. Este grupo belicista inclui tambem Israel, Arábia Saudita, Qatar, Turquia e Jordânia. A OTAN∕NATO atua como braço armado.
    Não é por acaso a utilização, pelos agressores, de cerca de 120 mil mercenários provenientes de 83 países para tentar derrotar o povo sírio e desmembrar a sua pátria. Isto acontece porque fracassaram todas as tentativas feitas com o objetivo de organizar uma oposição nacional que pactuasse com centros de poder situados no exterior.
    O ponto central da atual guerra é a Síria ser vítima de uma agressão estrangeira. O foco da atenção deve, pois, estar centrado no empenho colocado pelos Estados Unidos e os seus aliados na repetição, desta vez sem resultado, do violento plano de dominação que conceberam e desencadearam contra a Iugoslávia e a Líbia. Estes países, cuja paz interna linha levado à prosperidade durante décadas, encontram-se hoje instáveis e reduzidos a escombros. E tudo isto resultou da desestabilização interna organizada no exterior como preparação para bombardeios e grandes operações militares no terreno.
    Um importante apoio que se pode prestar ao povo sírio é corrigir o foco das análises feitas sobre o conflito: da fictícia “guerra civil” para a muito real ofensiva militar estrangeira lançada com a utilização de milhares de mercenários. Assim, será possível ver com clareza a atuação dos países diretamente responsáveis por esta tragédia. Os seus dirigentes cometem, com esta ofensiva contra um governo legítimo e o seu povo, três tipos de crimes: de guerra, contra a humanidade e contra a paz. O mesmo se pode dizer sobre o papel desempenhado por Ban Kinmoon, que trai a todo momento o voto de confiança recebido por ocasião da sua eleição como secretário-geral da ONU. Ele foi eleito para, no seu cargo, promover e defender a paz, a cooperação, a segurança, proibir o uso da força e a ingerência nos assuntos internos das nações. Em lugar disto, como ficou demonstrado na Conferência Genebra II, ele apóia todas as manobras feitas pelos Estados Unidos para sabotar as conversações e destruir a Síria.
    Judeu Hipólito
    5 de fevereiro de 2014

    • Responder Fedra Rodríguez Hinojosa fev 5,2014 19:46

      Caro Judeu Hipólito,

      Concordo em parte com suas observações. Não há dúvidas que os grandes incentivadores do conflito atual da Síria são os EUA, potências europeias e as instituições por eles regidas. Num estranho jogo, assemelham-se ao deus Janus da mitologia romana: possuem duas caras, uma que se volta a condenar hipocritamente os grupos extremistas, e outra que apoia grupos como a Al-Qaeda e a Al-Nusra.
      No entanto, não podemos ignorar as cisões políticas e ideológicas que existem nos países do Oriente Médio e Maghreb. E é nesse ponto que sou obrigada a discordar de vc. Um dos eixos centrais dessas cisões é a questão religiosa: as disputas entre sunitas e xiitas têm longa data e ajudaram a criar fraturas incuráveis na política e sociedade árabes. Prova disso é o ativismo islamista: há marcantes diferenças entre o islamismo sunita e o xiita, especialmente no enfoque e nos interesses políticos.
      Nenhum problema dessa magnitude reside num único ponto…em geral, conflitos de grande porte são multifatoriais.
      E então vc me perguntará “Fedra, vc está ignorando o peso negativo das ações de EUA, Israel e Europa?” E eu te respondo: de forma alguma. Apenas acho que as cisões abertas pelas rixas entre ativistas sunitas e xiitas foram o meio perfeito para que as ações internacionais tivessem o sucesso que apresentam hoje.
      A palavra de ordem é: MULTIFATORIAL.

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