EUA-Rússia: Grande barganha na Síria?

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Syria. First day of truce

É coisa de suspense de espionagem: ninguém diz palavra. Mas há indicações de que a Rússia não anunciaria uma retirada parcial da Síria exatamente dias antes de as negociações de Genebra ganharem ímpeto, a menos que os russos tivessem conseguido costurar uma grande barganha com Washington.

Há, sim, alguma espécie de barganha nisso tudo, da qual ainda não se conhecem os detalhes; é o que a própria CIA anda dizendo pela boca de seus incontáveis porta-vozes na Think-tank-lândia dos EUA. E é esse o real significado oculto numa entrevista cuidadosamente cronometrada para o momento em que apareceu, de Barack Obama. Essa entrevista, por mais que custe crer, é como um documento de importante mudança de política.

Obama investe num desses proverbiais saneamentos, e agora admite que a inteligência dos EUA não identificou Bashar al-Assad, especificamente, como responsável pelo ataque químico de Ghouta. E depois vem migalhas, espalhadas aqui e ali, como mostrar a Ucrânia como se não fosse interesse vital dos EUA – o que colide de frente com a doutrina Brzezinski. Ou expor a Arábia Saudita como sanguessuga da política exterior dos EUA – o que provocou dura resposta do ex-parceiro de Osama bin Laden e Supremo da inteligência saudita, príncipe Turki.

Negociações e acertos parecem iminentes. E isso implica que aconteceram mudanças no plano do poder acima de Obama – que essencialmente não passa de mensageiro, office-boy. Mas ainda não significa que as agendas belicosas do Pentágono e da CIA estejam agora contidas.

A ordem do presidente russo Vladimir Putin, para retiradas do principal contingente de forças russas que operavam na Síria colheu a comunidade internacional no contrapé. Sputnik compilou opiniões dos principais políticos e intelectuais franceses sobre a retirada russa da Síria.

A inteligência russa não pode de modo algum confiar num governo norte-americano infestado de células de neoconservadores doidos por guerras. O mais importante: a doutrina Brzezinski fracassou – mas não está morta. Parte do plano de Brzezinski era inundar os mercados de petróleo com produção máxima na OPEP, para destruir a Rússia.

Conseguiram causar danos, mas a segunda parte, que consistia em atrair a Rússia para uma guerra na Ucrânia na qual os ucranianos serviriam como bucha de canhão em nome da “democracia”, falhou miseravelmente. E houve também o pensamento desejante de que a Síria sugaria a Rússia para um atoleiro de proporções à moda George Dábliu no Iraque – mas isso também falhou miseravelmente, agora que os russos apitaram e pararam o jogo.

O fator curdo

Já há várias explicações convincentes para a retirada (parcial) dos russos que estavam na Síria. O que interessa é que a base aérea Khmeimim e a base naval em Tartus permanecem intactas. Instrutores e conselheiros militares russos permanecem a postos. Tudo – raids aéreos, lançamento de mísseis balísticos do Cáspio ou do Mediterrâneo – permanece operacional. Força aérea russa continua a dar proteção às forças de Damasco e Teerã.

A Rússia pode estar reduzindo dimensões; o Irã (e o Hezbollah), não. Teerã treinou e armou forças paramilitares crucialmente importantes – milhares de soldados do Iraque e Afeganistão que lutam lado a lado com o Hezbollah e o Exército Árabe Sírio (EAS). O Exército Árabe Sírio continuará a avançar e a estabelecer fatos em solo.

Com as negociações em Genebra em andamento, tudo isso está agora relativamente congelado. O que nos leva ao mais difícil dos pontos chaves em Genebra – que tem de ser parte na possível grande barganha.

A grande barganha baseia-se em o atual cessar-fogo (ou “cessação de hostilidades”) ser realmente efetivo, o que absolutamente não é coisa garantida. Assumindo que todas as posições se mantenham, pode emergir uma Síria federal, que bem se pode chamar “Prismática”, no sentido de que faz ver a as diferentes frequências de que se compõe aquele feixe de luz.

Essencialmente, haverá três grandes províncias: um Sunistão, um Curdistão e um Cosmopolistão.

O Sunistão incluiria Deir ez-Zor e Raqqa, assumindo-se que toda a província possa ser extensivamente purgada do ISIS/ISIL/Daech.

O Curdistão acompanharia toda a fronteira com a Turquia – basta a ideia, para enlouquecer completamente, até o Juízo Final, o Sultão Erdogan.

E o Cosmopolistão reuniria alauítas/cristãos/drusos/e o coração sunita secular da Síria – a Síria que funciona –, de Damasco até Latakia e Aleppo.

Os curdos sírios já estão noticiando que essa Síria federal seria baseada em comunidade espiritual, não em limitações geográficas.

Como se poderia prever, a resposta de Ankara foi dura; qualquer sistema federal curdo no norte da Síria é não só linha vermelha absoluta como, também, “ameaça existencial” à Turquia. Ancara talvez esteja mergulhando na ilusão de que Moscou, com a desmobilização parcial, viraria os olhos para o outro lado caso Erdogan ordenasse uma invasão militar contra o norte da Síria, desde que os turcos deixem intacta a província de Latakia.

Mas espreita nas sombras a possibilidade de a inteligência russa estar pronta para um pacto com os militares turcos – com o corolário de que uma possível remoção do Sultão Erdogan pavimentaria o caminho para restabelecer a amizade russo-síria, essencial para a integração da Eurásia.

O que os curdos sírios estão planejando nada tem a ver com separatismo. Os curdos sírios são 2,2 milhões remanescentes, numa população síria de cerca de 18 milhões. Os cantões deles ao longo e através da fronteira Síria-Turquia – Jazeera, Kobani e Afrin – foram estabelecidos desde 2013. O YPG já conseguiu conectar Jazeera a Kobani, e está em vias de conectá-las também a Afrin. Em resumo, aí está a província Rojava.

Os curdos por toda a Rojava – pesadamente influenciados por conceitos desenvolvidos pelo líder do PKK (hoje prisioneiro) Abdullah Ocalan – estão em negociações avançadas com árabes e cristãos sobre como implantar o federalismo, privilegiando um modelo horizontal de autogoverno, uma espécie de confederação à maneira dos anarquistas. É programa político fascinante, que incluiria até comunidades curdas em Damasco e Aleppo.

Moscou – fator absolutamente crucial – apoia os curdos. Portanto, os curdos têm de ser parte nas conversações de Genebra. O longo jogo dos russos é complexo; não se por em aliança estrita nem com Damasco nem com a desacreditada ‘oposição’ armada e paga pela Turquia e pelo CCG. A equipe Obama, como sempre, está em cima do muro. Há o ângulo “aliado na OTAN” – mas até Washington está perdendo a paciência com Erdogan.

Vencedores e perdedores geopolíticos

Só a proverbialmente sem-noção mídia-empresa ocidental foi apanhada no contrapé pelo mais recente manobra diplomática da Rússia na Síria. A Rússia, sempre consistente.

A Rússia nunca deixou de promover consistentemente a parceria estratégica Rússia-China. Esse movimento andou na paralela à guerra híbrida na Ucrânia (operações assimétricas combinadas com apoio econômico, político, militar e tecnológica às Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk); até oficiais da OTAN com suficiente QI tiveram de admitir que, sem a diplomacia russa, não há solução para a guerra no Donbass.

Na Síria, Moscou realizou com sucesso o impressionante feito de fazer a “Equipe Obama” ver alguma luz por entre a névoa da guerra forçada pelos neoconservadores, e levou todos a uma solução para a questão do arsenal químico da Síria, depois de Obama já estar completamente enredado na sua própria linha vermelha. Obama muito deve a Putin e Lavrov, os quais literalmente o salvaram não só de um tremendo embaraço, mas também de se ver autometido em mais um atoleiro monstro no Oriente Médio.

Adeus às Armas:
resultados reais da campanha aérea dos russos na Síria

Os objetivos dos russos na Síria, expostos em setembro de 2015, foram alcançados. Jihadists de todos os matizes estão em fuga, inclusive – e crucialmente importantes – os mais de 2 mil nascidos em repúblicas do sul do Cáucaso. Damasco foi salva de uma ‘mudança de regime’ à moda da que foi feita contra Saddam ou Gaddafi. A presença russa no Mediterrâneo já não está sob ameaça.

A Rússia estará monitorando atentamente a atual “cessação de hostilidades”; e se o Partido da Guerra dos EUA decidir ampliar o “apoio” que dá ao ISIS/ISIL/Daech ou ao front dos “rebeldes moderados” por algum tipo de movimento de guerra nas sombras, a Rússia lá estará de volta num flash. Quanto ao Sultão Erdogan, pode vangloriar-se o quanto queira nos seus sonhos delirantes de “zona aérea de exclusão”; fato é que a fronteira noroeste entre Síria e Turquia está agora integralmente protegida pelo sistema S-400 de defesa aérea dos russos.

Mais do que isso, a íntima colaboração de toda a coalizão “4+1” – Rússia, Síria, Irã, Iraque plus Hezbollah – abriu mais caminho que um mero alinhamento Rússia-xiitas. Ela prefigura uma grande deriva geopolítica, pela qual a OTAN deixa de ser o único pôquer da cidade como até aqui, ditando regras de um ‘imperialismo humanitário’; essa “outra” coalizão pode ser vista como prefiguração de um futuro papel chave, global, para a Organização de Cooperação de Xangai.

No pé em que estamos, pode parecer fútil falar em vencedores e perdedores na tragédia síria, que já completa cinco anos – especialmente com a Síria destruída por uma guerra imposta a ela, não provocada, viciosa, na qual as forças atacantes mantêm-se distantes [orig. proxy war]. Mas fatos em campo apontam para grande vitória, em termos geopolíticos, de Rússia, Irã e curdos sírios; e grande derrota de Turcos e da gangue do CCG dos petrodólares, especialmente se se considera os imensos interesses de geo-energia que se disputam ali.

Sempre crucial destacar que a guerra na Síria é guerra de energia – o ‘prêmio’ é conseguir posicionar-se melhor como fornecedor de gás natural para a Europa: o gasoduto já proposto IIS (Irã-Iraque-Síria) ou o gasoduto rival do Qatar até a Turquia, que implicaria necessariamente a cumplicidade da Síria.

Outros dos que perdem muito, em termos geoestratégicos incluem o humanitarismo autoproclamado de ONU e União Europeia. E, sobretudo, o Pentágono e a CIA e a gangue de ‘rebeldes moderados’ armados por eles. Não acabará até que o último jihadista entoe sua oração de chegada ao Paraíso. Enquanto isso, a Rússia zela pelo seu “intervalo”.

Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como:  Sputinik, Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today e Al-Jazeera.

 

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