Do islã na democracia… 4

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Por Mohammed Hadjab*.

Muitos são os especialistas, brasileiros e estrangeiros, que, ao refletirem e analisarem questões vinculadas à geopolítica, as Relações Internacionais e os mundos árabes e islâmicos – (faço questão de utilizar a forma plural para enfatizar melhor sobre a complexidade desses mundos), tem apresentado dificuldades em reconhecer o caráter golpista envolvendo o recente afastamento da irmandade muçulmana da esfera política no Egito. Não raro, essa dificuldade parece despontar em situações relacionadas a um processo ainda incipiente de eleições democráticas, mais especificamente, em se tratando da provável vitória de um partido de obediência islâmica – seja em Túnis, Gaza ou Cairo – e provém de um medo intrínseco de que recaiam acusações tais como ser pró-islamista[2] ou de aderir ao jogo de extremistas, salafistas, terroristas ou jihadistas conforme o vocabulário à la mode. Na maioria das vezes, os próprios analistas têm optado por recomendar cautela, alguns inclusive, deixando de assumir uma postura mais clara, talvez por medo de cometerem um ato próprio a qualquer ser humano: um erro de analise.

Na verdade, esse filme já é algo conhecido. Por exemplo, é recorrente, ao se tecer qualquer crítica contra a política de colonização dos territórios ocupados, correr o risco de se expor a um tipo de censura quando evocada a palavra islã ou, ainda, ao se defender a causa palestina. A menos que se enfatize previamente o direito de Israel de zelar por sua segurança (lembrando sempre de afirmar que você não é antissemita, por mais que você seja também semita-árabe), o resultado dessa falta de “cuidado” pode ser o banimento do mundo dos progressistas, dos democratas ou dos defensores da liberdade.

A ideia de que, uma vez no poder, os partidos islamistas poderão utilizar essa democracia a fim de exterminá-la num curto espaço de tempo, parece ter sido o fio condutor do pensamento difundido pela maioria dos democratas seculares, tanto no Ocidente quanto nos mundos arabo-muçulmanos. Em últma instância, o que se parece desejar, não é a implementação de um sistema democrático que responda às aspirações dos povos respeitando os aspetos socio-históricos e culturais de cada Estado, mas sim impor e instaurar uma democracia global, universal, capaz de responder às aspirações de qualquer povo, independemente da sua cultura, religião ou desejo!

Organizar eleições livres na Palestina contando com a presença de obervadores internacionais é otimo! Porém, ver o partido Hamas vitorioso… Isso é ruim! Acabar com o poder Mubarakista no Egito é fantástico! Já a vitória da irmandade muçulmana nas urnas significa, na opinião desses mesmos oponentes seculares, que o país levantará a levantar a bandeira do obscurantismo medieval teocrático que poderá vir a ameaçar uma das mais antigas civilizações do planeta.

Uma reflexão interessante seria procurar saber qual a opinião de árabes ou muçulmanos a respeito da vitória de partidos ultradireitistas  e racistas em países com a França, a Itália ou a Holanda. Quem falou primeiro sobre cruzadas? Bush ou Ahmadinejad?

Na realidade, há dois tipos de fundamentalismos muçulmanos baseados numa visão maniqueísta digna de um bom filme western americano: The good and the bad! De um lado, “The good”, ou seja, a Arábia Saudita: exportadora do Soft Power Wahabista, uma das doutrinas mais sectárias e retrogradas do islamismo sunita, com a benção das grandes potências ocidentais que reivindicam o Logos Kantiano e Volteriano, mas que não hesitam em se ajoelhar perante os senhores do deserto cujos poços produzem petrodólares capazes de comprar a Vieira Souto ou a Avenida Paulista numa fração de segundo. Ou o Qatar, novo querido e eldorado dos países ocidentais, capaz de montar uma equipe de primeira divisão em Brasília em uma semana em condições de rivalizar com times como o Barça ou o Real de Madri, mas que também financia, tanto organizações terroristas na África subsaariana, quanto o Likud de Netanyahu e o partido ultra-direitista Israel Beitenu de Avigor Libermann[3] (sem esquecer-se de abrigar a base americana mais importante fora dos Estados Unidos[4]).

Do outro lado, estão os “maus” (ou, The bad): o Hamas, a Irmandade Muçulmana no Egito, Ennahda na Tunísia e o Hezbollah no Líbano, cuja legitimidade política passou pelas urnas!

Pois é disso que se trata: desse tsunami verde que inunda as terras do Golfo Pérsico até o Oceano atlântico, parafraseando a famosa declaração de um dos pais do nacionalismo árabe, Sati El Husri.

Assim, de repente, as primaveras árabes se transformaram em invernos islâmicos e os movimentos pré-democráticos surgidos na Tunísia e no Egito acabaram com os regimes ditatoriais implementados desde a sua independência que apareciam aos olhos do ocidente tais como fortalezas contra essa doença do Islã [5] como a chama o ensaísta tunisiano Abdelwahab Meddeb, para melhor seduzirem as potências ocidentais que costumavam apresentarmos os Presidentes Benali e Mubarak como os principais arautos da modernidade no Norte da África contra o fanatismo religioso. O que os defensores da modernidade omitiam foi que isso ocorreu por meio de prisão, torturas e assassinos dos oponentes políticos (mesmo aqueles não islamitas) cuja única arena onde se podia fazer ou falar de política se tornou…….a mesquita!

Ao contrário do que escreveu Gustavo Chacra, em sua coluna no Estadão no dia 5 de julho de 2013[6], eu não penso que se deva comparar a experiência egípcia com a da Síria, mas com os eventos e protestos que ocorreram no Brasil. Os egípcios simplesmente protestaram contra o imobilismo da política do país, a corrupção e a má administração de um poder que não os ouvia, além de todos os poderes suplementares que se outorgou o Presidente Morsi enquanto o povo pedia o cancelamento dos mesmos desde novembro de 2012! Embora o povo brasileiro expressasse seu descontentamento contra a política do governo e sua vontade de ter direito a mais justiça na área do transporte, da saúde e da educação, o exército não retirou a Dilma trancando-a em uma residência. Pois é disso que se trata: do respeito à democracia e aos resultados das urnas. Apesar das suas imperfeições, a democracia brasileira é consolidada embora precise ser mais respeitada, em primeiro lugar, pela sua classe política!

Isso deveria ter acontecido no Egito. Morsi, que iniciou uma governança contestada desde sua posse em junho de 2012 com uma equipe governamental mal preparada para assumir os assuntos de Estado, não conseguiu implementar as reformas econômicas necessárias que o Egito precisava sem precisar impor o estado de direito. Embora seja criticável seu início de governo, ele não deveria ser condenado por não ter conseguido por fim aos 30 anos de clientelismo e de corrupção da era Mubarak em um ano. Como o ressalta Alain Gresh, jornalista do jornal Le Monde Diplomatique, especialista do Oriente Médio, nunca a liberdade de expressão foi tão importante no Egito do que na era Morsi[7].

Outro ponto que merece ser mencionado está ligado ao comportamento do exército egípcio, que muitas vezes aparece na mídia como um exército republicano que agiu para resgatar seu povo abusado. Nota-se que uma tendência ao desconhecimento geral quanto ao modus operandi dessa instituição, que está longe de se parecer com o exercito português, com seus fuzis adornados de cravos. O jornal britânico The Guardian[8], fez uma boa recaptulação sobre o assunto, em sua edição de 12 de abril de 2013, na qual ele indica o número de torturas, de execuções além de mais de 1000 pessoas sumidas durante os 18 dias da revolução. O Presidente Morsi, ao pedir mais poderes, solicitou uma investigação, além de que fossem realizados julgamentos apontando para altos responsáveis do exército e da polícia egípcia no tocante à sua parcela de responsabilidade no assassinato de civis egípcios em 2011, razões que pesaram sobre o golpe militar recente.

Raros são os exemplos pelo mundo mostrando o papel positivo do exército numa revolução levando à democracia, exceto o memorável caso português.

Parece-me interessante analisar neste caso sob a luz da experiência do Outono Argelino em 1988. Foi com uma antecedência de 25 anos sobre as outras nações árabes que Argélia iniciou sua própria revolução: o país, que na época, inovou no mundo árabe ao implementar o multipartidarismo no pais autorizando a criação de um partido religioso denominado Frente Islâmica de Salvação ou FIS, tem sido pouco lembrado por analistas dispostos a refletir sobre a atual situação do Egito.

Naquele momento, nenhum país árabe possuía acesso a uma liberdade de expressão tão importante quanto a Argélia, com a multiplicação de partidos políticos e com a presença de uma impressa livre, que marcaria o final da década de 1980. No entanto, após vitória de um partido islâmico nas eleições municipais e durante o primeiro torno das eleições legislativas, o poder então nas mãos do militares, interrompeu o processo democrático, destituiu o Presidente, instaurou um governo militar e declarou o partido islâmico FIS ilegal.

Isso veio a desencadear uma guerra civil entre os militares e combatentes islâmicos que custou a vida de mais de 200.000 pessoas[9] e cujas consequências continuam impactando ainda hoje, haja vista o recente conflito do Mali.

Em publicação feita em no dia 2 de julho de 2013 em seu blog, o acadêmico egípcio Khaled Fahmy explica num artigo chamado « Why Egypt is not Algeria » que o Egito não pode de jeito nenhum vivenciar um cenário do tipo argelino sendo que as eleições ocorridas naquele país não foram resultado de uma revolução popular tal como isso ocorreu no Egito[10]. Em minha opinião, o autor parece não levar em conta o caráter revolucionário da única nação árabe a ter conseguido sua independência por meio de uma luta armada contra o colonizador francês, bem como os protestos ocorridos em Argel em 5 de outubro de 1988, a partir dos quais os protestos iriam se demultiplicar por todo o país. Os manifestantes atacaram os bens e as propriedades da Frente de Libertação Nacional (FLN), único partido no poder, as prefeituras, as delegacias e até os próprios membros do governo. O estado de exceção foi então declarado em todo o país. Em Argel, o exército contou com 10.000 soldados para “restaurar a ordem”, matando aproximadamente 600 pessoas, prendendo 3.500 pessoas e causando danos estimados em 250 milhões de dólares.

O que diferencia Argélia do Egito, a meu ver, foi o uso massivo de tecnologias da informação como internet, facebook e tweeers que beneficiaram os egípcios e com os quais não a juventude argelina não podia contar em 1988. Mesmo passados mais de vinte anos, o poder militar argelino ainda ocupa e domina a vida política hoje em dia, ainda que de uma forma reduzida!

O que está realmente em jogo é a participação ou não dos partidos religiosos nas paisagens políticas árabe-muçulmanas. Há de se levar em conta as diferenças fisionômicas entre os partidos islâmicos, pois, existem aqueles que operam dentro de um âmbito democrático já consolidado – tal como o AKP de Erdogan na Turquia, os que vivem em um perpétuo estado de esquizofrenia – como, por exemplo, o Hamas na Palestina (ausência de um estado palestino, a ocupação israelense) e o Hezbollah libanês (e os 40 anos de ocupação israelense). A existência de partidos islamistas no panorama árabe-muçulmano não pode ser ignorada ou rejeitada porque eles carregam uma conotação religiosa islâmica. Neste caso, também se deveria excluir, por exemplo, os democratas-cristãos da CDU, ou a uniao crista social da CSU da Baviera na Alemanha. O Partido do AKP (Justica e Desenvolvimento) na Turquia se auto-proclama uma instância partidária chamada hoje de democrata-muçulmana demostrando que o islã é solúvel numa democracia que não se nega e que considera as especificidades históricas e sócio-culturais dos paises onde ela tenta se implantar.  Isso nao significa, no entanto, que nao existam controvérsias a respeito das intenções do partido do primeiro Ministro Recep Tayyip Erdogam, acusado de planejar e islamizar a sociedade laica turca por meio da promulgação de uma lei que proíbe a venda de álcool em estabelecimentos comerciais entre 22h e 06h da manhã. Ademais, a municipalidade de Istambul tomou também medidas proibindo a venda de álcool em cafeterias e jardins da cidade, o que levou vários cidadaos turcos a organizarem protestos onde bebiam álcool nas ruas para melhor marcar sua oposicao a respeito dessa lei[11].

Porém, até o momento, a democracia turca continua funcionando mesmo que seja nas manifestações de insatifacao de uma parcela da população contra a politíca do Primeiro Ministro islamo-conservador. Exemplo disso foram as demonstrações de resistência civil que buscou defender a permanência do parque Gezi na cidade de Istambul[12].

A aprendizagen da democracia é constante e leva tempo. Não acredito que possa ser implantada contra a vontade dos povos por meio do uso da força. O despertar democrático nessa região do mundo será lento e doloroso, ou do contrário, não será. E o caos continuará reinando, acompanhado de carnificinas que já começaram nesse trágico “14 de agosto de 2013”. Será mesmo que o Egito não é Argelia?



[1] Pós-graduando em Relações Internacionais na UNISINOS, São Leopoldo, RS.

[2] Parece-me importante usar a palavra islamista em vez de islamita para diferenciar aqueles que se servem do islã para fins político dos praticantes da religião muçulmana.

[3] Fonte: o jornal semanal francês Le Canard Enchaîné de 29 de maio de 2013.

[4] http://www.lemonde.fr/societe/article/2012/10/08/financement-de-l-islamisme-radical-un-ex-chef-de-la-dst-met-en-cause-le-qatar-et-l-arabie-saoudite_1771633_3224.html)

[5]  Do livro “La maladie de l´islam” de Abdelwahab Meddab, Editions le Point

[6] (http://blogs.estadao.com.br/gustavo-chacra/quem-apoia-a-queda-de-morsy-no-egito-deve-apoiar-permanencia-de-assad-na-siria

[7] Veja em http://blog.mondediplo.net/2013-07-03-Egypte-l-armee-et-le-peuple-unis

[8]Egypt’s army took part in torture and killings during revolution, report showshttp://www.guardian.co.uk/world/2013/apr/10/egypt-army-torture-killings-revolution

[9] http://www.algeria-watch.org/fr/aw/aw_presentation.htm

[10]The Algerian elections were not the result of a revolution the way the Egyptian elections were” http://www.madamasr.com/content/why-egypt-not-algeria

[11] http://www.lemonde.fr/europe/article/2013/06/10/erdogan-rencontrera-mercredi-les-representants-des-manifestants_3427628_3214.html

[12] http://www.lemonde.fr/international/article/2013/06/03/en-turquie-la-revolte-contre-le-pouvoir-se-propage_3422685_3210.html.

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4 thoughts on “Do islã na democracia…

  1. Responder Patricia ago 29,2013 13:58

    Prezados, parece-me que a última frase esta cortada. Seria possível verificarem? Obrigada.

  2. Responder Gustavo Chaves Lopes set 29,2013 15:10

    Excelente artigo. Traz ao debate diversas questões que geralmente não aparecem na análise dos ditos especialistas.

  3. Responder eduardo sarkis set 30,2013 12:10

    Não vejo como religião e política possam combinar.Dogmas religiosos servem para que as pessoas evoluam enquanto seres humanos.A partir do momento que passa a ser politizada fatalmente será direcionada em favor dos interesses de alguns em detrimento do ecumenismo.No Egito foi assim,na Turquia está sendo e será em qualquer lugar do mundo.

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