Conexão da Síria com Irã, Afeganistão e China

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Iranians hold anti-US placards and shout slogans during a rally after Friday prayers in the capital Tehran on May 11, 2018, after President Trump withdrew the US from a nuclear accord signed in 2015. Photo: AFP

30/5/2018, Pepe Escobar, Asia Times in The Vineyard of the Saker

Uma pergunta crucial ocupa hoje os políticos no Irã, Iraque, Síria e Líbano: O governo Trump tem ou não tem plano estratégico para o Oriente Médio?

Poucos estão mais preparados para responder que Saadallah Zarei, reitor do Instituto de Estudos Estratégicos Andishe Sazan-e Noor em Teerã.

Zarei, extremamente discreto, homem de fala suave, que encontrei em Mashhad há alguns dias, além de um dos principais especialistas iranianos em análise estratégica, é um dos cérebros que opera ao lado do comandante da “Força Qods” do Corpo de Guardas da Revolução Islâmica, general Qasem Soleimani – considerado, na Av. Beltway em Washington, a mais completa besta-fera.
Também por isso, estrategistas norte-americanos bem fariam se prestassem alguma atenção a Zarei.

Os EUA “possuem 37 bases militares fixas e quase 70 bases móveis no Oriente Médio” – diz Zarei. – “Nós não observamos estratégias específicas e fixas”.

Diz de sua perplexidade com “o comportamento contraditório no relacionamento com a população xiita. O comportamento dos EUA em termos da população xiita do Bahrain e seus direitos, da população xiita zaidista no Iêmen e na Caxemira e também em termos da população xiita no Líbano – 35% da população total –, não é especificado e ninguém sabe o que os norte-americanos pensam dos xiitas, nem do modo como agem.”

Zarei também observa que “os EUA não têm política específica sobre as democracias da Turquia e Irã. Também não há qualquer estratégia específica sobre a democracia no Iraque e no Líbano. Os EUA falam sobre democracia como se fosse um valor norte-americano, e tentam generalizá-lo, mas aqui nessa região, vemos que os melhores amigos dos EUA são países que não incluem eleições nos respectivos sistemas políticos.”

Em resumo, segundo Zarei, a “estratégia dos EUA não é coerente no Oriente Médio. Acho que essa é a principal razão do fracasso das políticas dos EUA nessa parte do mundo.”

Entram os xiitas hazaras

Novo zoom-in, da macroanálise para a visão micro em campo. Comparem-se Zarei e Komeil, xiita hazara de 24 anos, original de Cabul. Komeil é um dos cerca de 14 mil soldados, todos afegãos hazaras que têm passaporte afegão, que constituem a brigada Liwa Fatemiyoun que combate na Síria. Encontramo-nos em Mashhad, onde Komeil está passando o Ramadan, antes de voltar às linhas de frente, mês que vem.

Um dos fundadores mais importantes da brigada Fatemiyoun, em 2013, foi Abu Ahmad, morto por um míssil de origem desconhecida, perto das colinas do Golan, em 2015. De início, tratava-se de uma organização religiosa criada para “defender os santuários xiitas na Síria” ou, como Komeil prefere reforçar, para “defender a humanidade, os pobres”.

Nenhum dos combatentes da brigada Fatemiyoun tem passaporte iraniano embora alguns, como Komeil, realmente vivam no leste do Irã; está em Mashhad desde 2011. Quase todos os combatentes são voluntários; Komeil acompanhou “amigos” quando se uniram à brigada. Recebeu treinamento militar na base aérea de Bagram, quando ainda estava no Exército Afegão.

Komeil conta que participou de combate direto contra grande sortimento de jihadistas salafistas – do Daech e da Frente al-Nusra até grupos menores que eram parte da ampla organização guarda-chuva conhecida como Exército Sírio Livre. Esteve nas linhas de frente ininterruptamente durante três anos, combatendo principalmente em “Sham e Zenaybi” perto de Damasco, e também esteve presente na libertação de Aleppo.

Descreveu os jihadistas do Daech em combate como “muito difíceis”. Diz que viu combatentes do Daech vestindo “roupas norte-americanas” e portando rifles fabricados nos EUA. Prisioneiros capturados comiam comida da Arábia Saudita e Qatar”. Ele, pessoalmente, capturou uma “mulher francesa que trabalhava com o Daech”, mas diz que não sabe o que houve com ela, só diz que “os comandantes tratam bem os nossos prisioneiros”.  Jura que “menos de 10%” dos jihadistas do Daech são sírios. – “São sauditas, uzbeques, tadjiques, paquistaneses, ingleses, franceses e alemães.”

Em contraste com a catarata de propaganda que inunda o Departamento de Estado em Washington, Komeil afirma e reafirma que não há comandantes do Corpo de Guardas Revolucionários do Irã ativos com a brigada Fatemiyoun, nem com o Hezbollah. Eles lutam “lado a lado” – e os iranianos são essencialmente conselheiros militares. Apresenta a brigada Fatemiyoun como organização completamente independente. Sendo assim, o treinamento militar deles viria principalmente da participação no Exército Afegão, não do CGRI.

Komeil disse que o famosíssimo comandante da Força Qods, general Qasem Soleimani visitou, sim, o grupo, “mas só uma vez”. Cada força é responsável pela própria área de operações : Fatimiyoun; Hezbollah; o Exército Árabe Sírio (EAS); os paquistaneses (“combatentes fortes”); o grupo al-Defae-Watan, que ele apresenta como equivalente do iraquiano Hashd al-Shaabi (movimento também conhecido como as “Unidades Populares de Mobilização”); e os Medariyoun também do Iraque.

O ‘crescente xiita’ revisitado

O governo Obama admitiu pelo menos que conselheiros militares iranianos, além da força aérea russa e combatentes do Hezbollah ajudaram o Exército Árabe Sírio a derrotar o Daech e outros grupos jihadistas salafistas na Síria.

Mas, para o governo Trump – em sincronia com Israel e Arábia Saudita – é tudo ou preto ou branco; todas as forças sob comando do Irã têm de sair da Síria (o que inclui a brigada Fatemiyoun). Não acontecerá. O virtual colapso total do que se define frouxamente na Av.Beltway como “rebeldes moderados” – al-Qaeda na Síria inclusive – gerou um vácuo de poder já devidamente ocupado por Damasco. E Damasco ainda precisa de todas aquelas forças para extinguir completamente o jihadismo-salafista.

O Irã exerce influência importante em todo um arco que vai do Afeganistão ao Iraque, Síria e Líbano. As Zarei analisou: “A República Islâmica do Irã tem uma estratégica específica na região. Temos determinados princípios, amigos e capacidades. Além disso, temos uma compreensão coerente de quem é nosso inimigo e sabemos onde devemos nos postar nos próximos 20 anos. Assim sendo, nos dedicamos a usar nossas capacidades cuidadosamente e administrar gradualmente o que nos cabe fazer.”

Nada teve ou tem a ver com algum ameaçador “crescente xiita”, como sugeria, em 2004, o rei Abdullah da Jordânia. Foi essencialmente um contragolpe iraniano em câmera lenta contra a não estratégia dos EUA em todo o Sudoeste da Ásia desde “Choque e Pavor” em 2003 – como Zarei identificou o processo.

A “Força Qods” – constituída durante a guerra Irã-Iraque nos anos 1980s – é a extensão extraterritorial do Corpo de Guardas da Revolução Islâmica. Conversei com alguns veteranos de guerra em Karaj, onde eles se reúnem numa associação montada numa réplica de um bunker comíamos uma deliciosa sopa osh – um equivalente persa da pasta e fagioli da Toscana – depois das reuniões. O comandante Said Mohammad Yayavi disse que de modo algum será aceita a demanda do governo Trump, expressa pelo secretário de Estado Pompeo, de que o Irã desmobilize a Força Qods.

A Força Qods pode ser descrita como equivalente às Forças Especiais dos EUA e aos agentes especiais da CIA, tudo isso condensado num só grupo. Para Washington, seria “organização terrorista”. Mas na prática a Força Qods é tanto um braço da política de segurança nacional do Irã no Sudoeste da Ásia, quanto o Pentágono e a CIA para reforçar os interesses da segurança nacional dos EUA em todo o mundo.

E há uma continuidade notável. No “bunker” em Karaj conversei com Mohammad Nejad, coronel aposentado da Força Aérea do Irã, que em meados dos seus 20 anos participou de batalhas da guerra Irã-Iraque combatendo em Bushher. Há dois anos voltou à Síria por dois meses, servindo como conselheiro militar.

Todos os olhos postos na Organização de Cooperação de Xangai

A estratégia incoerente dos EUA no Oriente Médio a que Zarei referiu-se aplica-se igualmente ao Afeganistão. Outra das demandas do governo Trump é que Teerã pare de apoiar os Talibã.

Em campo, a realidade é infinitamente mais nuançada. A guerra sem fim dos EUA no Afeganistão gerou milhões de refugiados; muitos deles vivem no Irã. Em paralelo, Washington implantou uma rede permanente de bases militares afegãs – que Teerã identifica como grave ameaça, onde agentes inimigos clandestinos podem encontrar apoio dentro do Irã.

O que está acontecendo nessas circunstâncias é que Teerã, com meios mínimos – e de comum acordo com serviços de inteligência do Paquistão e da Rússia – realmente apoia pequenos grupos a oeste do Afeganistão, em torno de Herat, inclusive alguns que mantêm laços distantes com os Talibã.

Mas é movimento que se enquadra bem numa estratégia mais ampla da Organização de Cooperação de Xangai. Membros da OCX – Rússia, China e Paquistão, e o Irã, como membro pleno em breve; para nem falar do Afeganistão, membro futuro, todos esses países desejam uma solução asiática, comandada pela OCX, para a tragédia afegã. E qualquer solução eficaz tem de garantir lugar para os Talibã no governo em Cabul.

Compare-se agora esse projeto com o já confessado complô do governo Trump para provocar uma mudança de regime em Teerã. Arábia Saudita já está alistada. Riad, via um think tank supostamente apoiado pelo príncipe coroado Mohammad bin Salman, codinome “MBS”, está financiando uma cadeia de escolas religiosas (madrassas) antixiitas no Baloquistão no Paquistão, região que faz fronteira com a província Sistão-Boloquistão no Irã.

O plano saudita é pelo menos interromper o surgimento do porto de Chabahar, que é precisamente a porta de entrada da Nova Rota da Seda indiana para o Afeganistão e Ásia Central, sem passar pelo Paquistão.

A Índia, país dos BRICS, como Rússia e China, não aprovará, para dizer o mínimo, o projeto saudita; e a Índia também já é novo membro da Organização de Cooperação de Xangai, e absolutamente contrária a quaisquer modalidades de jihadismo salafista.
Para acrescentar mais confusão a essa mistura complexíssima, o advogado-geral do Paquistão, Ashtar Ausaf Ali, em visita ao Irã, recebeu um aviso de que o Daech “está de mudança” para a fronteira Afeganistão-Paquistão. Ainda não se sabe com clareza quem está promovendo a mudança. O que é certo é que o ISIS-Khorasan, ou ISIS-K – vale dizer, o braço afegão do Daech – está realmente combatendo contra os Talibã.

Coincidentemente, a força aérea dos EUA está também lutando contra os Talibã, na operação chamada “Sentinela da Liberdade”. Matéria detalhada informou que “o número de armas dos EUA entregues em apoio da operação Sentinela da Liberdade aumentou para 562 em abril – o total mensal mais alto, até agora, de 2018; e o segundo mais alto total mensal desde outubro de 2011.”
Assim se aprende que quem está sendo bombardeado são os Talibã, não algum ISIS-K.

Não surpreende que as nações da Organização de Cooperação de Xangai estejam em alerta vermelho. O verdadeiro, real, grande mistério que permanece ainda por desvendar pela inteligência paquistanesa é: em que ponto da fronteira porosa entre Afeganistão e Paquistão estão sendo despejados (e escondidos) os mais de 4 mil bem armados jihadistas do ISIS-K?

Quem reconstruirá a Síria?

E assim chegamos ao último elo de interconexão de toda a região: a China.

O ministro de Relações Exteriores da China Wang Yi e seu colega sírio Walid Muallem mantêm relacionamento muito próximo. O presidente Xi Jinping é firme apoiador do processo de paz de Astana que reúne Rússia, Irã e Turquia. A China anunciou em novembro passado que instalará forças especiais chinesas na Síria contra todos os ramos de jihadismo salafista; o objetivo dos chineses é “neutralizar” 5 mil combatentes uigures que têm atuado no papel de “rebeldes moderados”, porque os chineses temem que gerem violência se retornarem a Xinjiang.

Mas acima de tudo, a China se envolverá profundamente na reconstrução da Síria: cidades, vilas, rodovias, ferrovias, pontes, escolas, hospitais, todas as redes de conectividade. A Síria será reconstruída por China, Rússia (energia, infraestrutura) e Irã (as redes de energia), não pelos EUA ou petromonarquias do Golfo. As sanções de EUA e União Europeia ainda estão vigentes, proibindo operações comerciais em EUA-dólares e em euros.

Coincide quem um encontro em Pequim, semana passada, dos presidentes do conselho de segurança da OCX. Yang Jiechi, peso pesado do Politburo, diretor da Comissão de Assuntos de Política Exterior do Comitê Central do Partido Comunista da China, conversou longamente com Nikolai Patrushev, top especialista russo em questões de segurança.

A 18ª Reunião de Cúpula da Organização de Cooperação de Xangai acontecerá dia 9 de junho em Qingdao. O presidente Vladimir Putin da Rússia comparecerá. Índia e Paquistão lá estarão. O presidente Hassan Rouhani do Irã lá estará, representando o Irã, que é membro observador, e se reunirá a três com Putin e Xi.

Para aquela mesa em Qingdao, afinal, dentro de dez dias, convergirão todas as conexões Síria-Afeganistão.

Traduzido por Vila Vudu

 

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