A “Intifada dos Mísseis”: colapso de uma era 

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24/5/2021, Alistair Crooke, Strategic Culture Foundation

O aclamado romance Birdsong narra uma história dentro da terrível guerra de trincheiras de 1914-18. As trincheiras – lama e corredores encharcados de chuva – eram separadas das linhas alemãs pelo inferno desolado da ‘terra de ninguém’ – indescritível planície selvagem de lama, lama e mais lama, semeada de pedaços quebrados do que algum dia foram homens, cujos restos ninguém se atrevia a recolher, e a surreal arte negra em arame farpado enrolado em todos os ângulos e formas imagináveis.

Nessa paisagem de Hieronymus Bosch, os alemães faziam rolar onda após onda de bombardeio intenso de fogo de artilharia altamente explosivo lançando colunas de fumaça terra acima até o céu. Mesmo assim, em contraponto a esse pano de fundo escuro e demoníaco, Birdsong traz história de luta humana, a morte sempre próxima e profunda compaixão por fantasmas feridos. Mas no fundo, é história de túneis – dos que se metem neles; dos sepultados neles, de como se sentem: e dos que saltam para fora deles – como vermes brotando da terra – para surpreender e matar o inimigo.

Túneis foram a arma secreta da 1ª guerra mundial. Foram resposta ao bombardeio aéreo impiedoso disparado por máquina militar esmagadoramente superior. Batalhões entravam com força máxima nas trincheiras, 800 homens, e de lá saíam, depois do fogo de barragem, 100-200 vivos. Mesmo assim lá estavam eles – voluntários, a escavar túneis por dentro da lama, para surgir, feito fantasmas, sobre o inimigo que dormia.

Ali nasceu a doutrina ocidental a favor de poder de fogo avassalador contra qualquer inimigo. Na guerra seguinte, 2ª Guerra Mundial, tudo já tinha a ver com bombardeamento (indiscriminado) de populações civis (na Alemanha e no Japão) para quebrar – psicologicamente – a vontade de lutar. Essa abordagem prosperou. Tornou-se a principal ferramenta na caixa de ferramentas do Ocidente. Churchill usou poder de fogo aéreo no Oriente Médio entre as duas grandes guerras. E superioridade aérea absoluta ainda é – hoje – o coração da estratégia de EUA e OTAN.

O que quero dizer com isso? Que toda essa estratégia militar baseada em bombardeio aéreo massivo – que começa nos anos 1920s e ainda é ativa em Gaza no século 21, vive seus estertores finais. Tornou-se obsoleta (pelo menos no Oriente Médio), como também a guerra de trincheiras tornou-se obsoleta depois de 1918.

Túneis (hoje muito mais sofisticados), ganharam nova vida como resposta a bombardeio aéreo massivo em terreno civil, usado como principal arma de guerra psicológica. Marcam o fim de uma estratégia. Mísseis em enxame e clusters de drones inteligentes são hoje os pontos de inflexão: a ‘nova’ guerra – como também ‘nova’ guerra começou, com o advento do arco longo (nos anos 1300s). Mísseis em enxame e clusters de drones inteligentes tornaram-se, de fato, de algum modo, a Força Aérea alternativa do Hamas, do Hezbollah, dos Houthi e do Irã.

Claro que a barragem de foguetes do Hamas colheu Israel (e Washington) de surpresa. Talvez nem todos já tenham compreendido, mas o conflito Israel-Palestina jamais voltará a ser o mesmo de antes. Por quê?

Para ser muito claro e em primeiro lugar, o que aconteceu reencena exatamente o modo como as tropas na 1ª Guerra Mundial encontraram resposta parcial aos ataques da artilharia alemã contra suas posições. Lá a resposta também estava nos túneis, então ainda estreitos, instáveis e precários. E foi assim, também, que o Hezbollah, a resistência iraquiana e os Houthi, aprimoraram aquela estratégia. Hoje as forças da resistência têm túneis muito mais profundos (30m), fortificados – efetivamente capazes de emascular o Poder Aéreo de Israel e – o que não é pouco! – capazes também de virar o poder aéreo dos israelenses contra os próprios israelenses, comprometendo a imagem de ‘infalibilidade de Israel’.

Em segundo lugar, o massacre que Israel promoveu em Gaza, matando 230 palestinos, inclusive 65 crianças, fez o mundo ‘exterior’ voltar-se contra Israel. E pela primeira vez há nos EUA debate sério sobre o apoio que o país dá ao sistema israelense de controle entrincheirado nos territórios palestinos e à anexação criminosa de terras palestinas. Esse apoio dos EUA a Israel sempre, antes, foi absolutamente indiscutível e jamais discutido nos EUA.

Mas por que essa vez seria diferente de eventos anteriores? O que mudou? A novidade é um “neonormal Democrático”[1]. Dito em poucas palavras, aconteceu a ‘revolução Acordai’ [orig. woke revolution]. Com os EUA e partes da Europa afinal vendo as próprias histórias de colonização, ocupação, matanças étnicas e colonialismo como aberrações tóxicas que têm de ser redimidas, tornou-se afinal possível dizer hoje nos EUA coisas, sobre Israel, que o país pensa há muito tempo, mas mantinha caladas in pectore. Antes, essas mesmas coisas, se ditas, teriam feito desabar a morte sobre a carreira de qualquer pessoa que se atrevesse a dizê-las em público. Isso, agora, mudou.

Em terceiro lugar, crescente número de políticos que apostaram as próprias carreiras em construir a solução ‘de dois estados’, de Oslo, afinal começam a se dar conta de que fatos em campo mostram que Oslo é fantasia. “O quadro de Oslo está acabado, passou,” disse Marwan Muasher, político e ex-diplomata jordaniano que teve papel central na Iniciativa de Paz Árabe há duas décadas: “Sou pró ‘dois estados’, por treinamento. Sou pró ‘um estado’, por realidade”.

Os pilares chaves de Oslo foram quimera: que bastaria a demografia para forçar Israel a implementar uma solução de dois estados; que a colaboração palestina na área de segurança afastaria as hesitações israelenses para endossar um estado palestino; e, em terceiro lugar, que um estado palestino poria fim à ocupação. Todos esses pressupostos comprovaram-se falsos.

Mas EUA e europeus não têm ideia de o que fazer sobre a situação, além de clamar por um retorno ‘à normalidade’ – suficiente para permitir que israelenses ‘voltem à praia’ e fazer com que palestinos ‘voltem à jaula’, como um comentarista disse, cáustico, sobre o que significaria ‘normal’.

Possivelmente, a impotência ocidental, que não consegue encontrar o que fazer, ajuda a explicar o quanto os eventos em Gaza surpreenderam o Ocidente. Enquanto o Ocidente insistia em solução secular e liberal, o Irã, o Hamas e o Hizbollah silenciosamente forjavam resposta muito diferente – e que mudaria todo o paradigma. Na prática, a guerra do Líbano em 2006 foi um ‘ensaio geral’. Marcou o ‘fim do começo’ desse novo modo enxame de drones e guerra de mísseis; e essa mais recente guerra de Gaza (com mísseis e drones inteligentes mais sofisticados, que hoje cercam Israel) representa a chegada à maturidade de Irã, Hamas e Hizbollah. É movimento concertado, intimamente coordenado. Mas o Hamas preferiu fazer sua estreia em Gaza como movimento inteiramente palestino.

In 2006, Israel também foi apanhada de surpresa.

Amos Harel recorda que nenhum dos presentes na sala jamais esquecerá o briefing da 6ª-feira, 14/7/2006, feito por “Dan Halutz, orgulhoso comandante do estado-maior do exército de Israel no início da 2ª Guerra do Líbano”. Halutz lá estava, ticando um a um numa lista, como “feito!”, os sucessos do exército de Israel; a lista começava com ataque massivo contra o sistema de mísseis de médio alcance do Hezbollah (do qual naquele momento praticamente não se conhecia qualquer detalhe). Halutz tentava convencer os repórteres de que o exército reagira adequadamente ao sequestro de dois soldados da reserva, dois dias antes.

De repente, alguém lhe passou uma nota, com notícias de que um míssil cruzador [do Hezbollah] atingira o navio da marinha israelense (armado com mísseis), INS Hanit, ao largo de Beirute. “Em guerra, nada garante que as surpresas acumulem-se sempre na mesma direção.”

De fato, o exército israelense, em 2006, estivera bombardeando uma miragem. O Hezbollah construíra aqueles túneis para desencaminhar o exército de Israel. Vazaram inteligência falsa, que Israel rapidamente absorveu. Os verdadeiros silos dos verdadeiros mísseis estavam protegidos e intactos – e as ondas de mísseis prosseguiram por quase um mês. É provável que o Hezbollah tenha transferido essa experiência estratégica para o Hamas? Sem dúvida, sim.

“Israel está cantando vitória (baseado na destruição de túneis do Hamas), mas está, isso sim, diante de uma derrota – como em 2006. Informes confiáveis sugerem que a estratégia do exército de Israel foi construída a partir da confiança de que conheciam o mapa dos túneis de Gaza. Assim, quando o exército israelense deliberadamente fez circular boatos sobre iminente invasão de Gaza por terra, calcularam que a liderança do Hamas imediatamente se embrenharia pelos túneis, os quais a Força Aérea de Israel bombardearia na sequência, para sepultar vivo o movimento. Só que não aconteceu – a liderança do Hamas não estava naqueles túneis, e os mísseis não pararam de chover sobre Israel.

Aluf Benn editor-chefe do Haaretz resume bem(18/5, só para assinantes):

“Podem cevar a opinião pública com noticiário arrogantemente distribuído sobre “golpes dolorosos que aplicamos ao Hamas” e exibir o piloto que assassinou um comandante da Jihad Islâmica – ao mesmo tempo em que esquecem que se tratava de um avançado jato de combate, com armamento de precisão, atacando um prédio residencial, feito versão modernizada de Judas o Macabeu ou de Meir Har-Zion. Mas nem todas essas camadas de maquiagem conseguem esconder a verdade: os militares não têm nem ideia de como paralisar as forças do Hamas e desequilibrá-las. Ao destruir os túneis com bombas poderosas, Israel só fez expor as próprias capacidades estratégicas, sem causar qualquer dano substantivo às capacidades de luta do inimigo.

Assumindo que 100, 200 ou mesmo 300 resistentes tenham sido mortos, Israel teria talvez derrubado o governo do Hamas? Ou, que fossem, seus sistemas de comando e controle? Ou sua capacidade para disparar foguetes contra Israel? O número a cada momento menor de alvos de qualidade é bem evidente no número crescente de baixas entre civis, conforme prosseguia a campanha (…).”

OK, há um israelense que com certeza não foi apanhado pelo pensamento dominante: “O mais agudo crítico do comando militar de Israel em anos recentes alertou que a próxima guerra será guerreada no front doméstico – [e] que Israel não tem resposta para ataque que envolva milhares de mísseis – os quais as forças terrestres de Israel não têm como combater”. Precisamente o que o Maj. Gen. Yitzhak Brik avisou que aconteceria. Mas como acontece tão frequentemente com vozes da oposição, Brik foi ostracizado e ignorado.

O longo arco da estratégia de bombardear terreno civil (justificado por ‘ideias’ de que ali se esconderiam terroristas), pode estar chegando ao termo de validade, com Direitos Humanos assumindo a centralidade na política exterior (e visão determinante da política doméstica nos EUA).

Aí há implicações para os EUA e para a OTAN, tanto quanto para Israel. O bombardeio da OTAN contra Belgrado, por 78 dias, em plena impunidade, seria talvez possível hoje, no clima dos ‘valores’ de hoje?

Foi ‘acertado’ um cessar-fogo (embora, como quase sempre acontece com a ‘mediação’ egípcia, as partes já estão novamente disputando o que se supunha que tivesse sido acordado entre todos). O cessar-fogo pode marcar uma pausa na batalha de Gaza, mas de modo algum significa fim de guerra.

A última das razões pelas quais o conflito entre israelenses e palestinos nunca mais será como antes é que a erupção coletiva em toda a Palestina histórica já unificou e mobilizou o povo palestino – sob liderança militar do Hamas. O Hamas é visto como a única força capaz de proteger a mesquita Al-Aqsa – ameaçada, por grupos de colonos ocupantes, de invasão e ocupação; e que também está sob ameaça de incêndio – ameaça que tem, realmente, potencial para inflamar todos os muçulmanos do planeta.

Gaza aquieta-se por hora, e a próxima fase dessa guerra muito provavelmente se travará em torno de Al-Aqsa, Jerusalém e as comunidades palestinas de 1948 dentro de Israel.

Os israelenses estão diante de nova realidade: o Hamas já não está ‘lá longe’, mas bem ali, próximo, em torno deles. Ainda mais importante, os israelenses sabem também que a probabilidade de que a coalizão de Direita que governará (provavelmente) Israel aceite esse novo paradigma de coexistência… é zero.”*******

[1] Sobre esse “neonormal”, ver 26/4/2021, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation: “O estresse imposto à coesão societal dos EUA pelo lançamento de uma revolução cultural de tipo woke (os Movimentos “Acordai: Vidas negras/mulheres/ o ‘verde’/ o-a ‘jovem’/ o-a ‘idoso’/ o-a ‘homossexual’ et allii importam”] pode vir a se provar forte demais.”

Traduzido pelo coletivo Vila Mandinga

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