Olhos bem abertos: Será que os ‘Masters of the Universe’ percebem que já ninguém os leva a sério?

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Pandemia de coronavírus: o que muda no Brasil e no Espírito Santo ...

6/4/2020, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation

A intromissão de evento completamente estranho e inesperado – como uma pandemia – num qualquer dado status não o fratura necessariamente, em si e por si mesmo. Mas expõe cruelmente os fracassos e os feitos do status quo. Expõe-nos, não só completamente nus, mas também com todo o obscuro cenário de concessões e negócios limítrofes entre o legal e o criminoso, com todos os amigos de Wall Street repentinamente sob holofotes.

Fiodor Dostoevsky constrói em Os Irmãos Karamazov [1970, São Paulo: Abril Cultural. Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes, para ler online] uma alegoria que se pode aplicar a nossos tempos, mas foi posta em Sevilha, no período mais terrível da Inquisição, quando todos os dias ardiam fogueiras para maior glória de Deus (não, como hoje, para a glória de Mamon), e naqueles esplêndidos autos da fé, quando ‘heréticos’ perversos eram queimados vivos. Foi publicado em 1880.

Nessa cidade, evento completamente estranho (deve-se dizer, não humano) ocorre, que desestabiliza profundamente a sociedade: os cidadãos são subitamente arrancados de seus monótonos afazeres diários, para ver o status quo, nu e cru – mas, dessa vez, com olhos bem abertos.

O Grande Inquisidor de Sevilha está furioso. Um dos tais eventos estranhos ameaça estragar seu cuidadosamente concebido status quo:

“Oh, devemos persuadi-los [os cidadãos de Sevilha] de que só serão livres, quando renunciarem à própria liberdade entregando-a a nós, e submetendo-se a nós. E nós? Estaremos certos, ou mentindo? Eles serão convencidos de que estamos certos (…) Ao receber de nós o pão, verão claramente que tiramos deles o pão que fazem com as próprias mãos –, [apenas] para devolvê-lo a eles (…) Na verdade, serão mais gratos por tomar o pão das nossas mãos – do que pelo pão! Muito bem conhecerão o valor da completa submissão! Devemos mostrar a eles que são fracos, nada além de crianças miseráveis, mas que a felicidade das crianças é a mais doce das felicidades.”

“Deixaremos que pequem; deixaremos que se ocupem com seus vícios. Monitoraremos tudo, regularemos tudo, ordenaremos e legislaremos sobre tudo – e também sobre a consciência deles – de modo que não tenham de se dar o trabalho de pensar, isso é o mais importante; nem serão obrigados a tomar decisões. Existirão só para nos servir, à elite que os governa: os milhões, numerosos como as areias da praia, que são fracos, que devem existir só para a elite, que os governa. Nesse mistério – diz o Grande Inquisidor, “está o grande segredo do mundo”.[1]

Pois bem, aqui estamos; e temos um evento estranhíssimo: Covid-19. É diferente, claro. O Inquisidor literalmente queimou (viva) a ameaça à ordem que andava por Sevilha. Assim também, nossos ‘Eleitos’ de hoje estão igualmente ansiosos por preservar o status quo. E por razões muito similares às do Inquisidor.

As elites de hoje, contudo, estão diante de paradigma muito mais complexo: falamos aqui mais das consequências do Covid-19 sobre a psicologia huma  na, não da eficácia de ações que se empreendam ou não se empreendam, pelo Fed ou Bancos Centrais do G7. A ameaça em Sevilha teve a ver, fundamentalmente, com transformação psicológica: o ‘evento’ em Sevilha induziu cidadãos a questionar o significado da própria vida de cada um – e a duvidar do ‘empreendimento’ humano (do ‘empreendimento’ da elite, em particular). Não terminou bem na Rússia – nem, afinal de contas, para os Inquisidores.

Para os governos – no fundo – a questão é como ressuscitar a economia que foi posta em hibernação. Líderes ocidentais temem que, se a economia não for despertada – e depressa – pode haver dano permanente à infraestrutura da economia real – e consequentemente, uma série de falências que levem a uma possível crise financeira, ou a uma implosão (i.e. à ruína do status quo). Assim sendo, ouvimos muita coisa sobre a cura ser pior que a doença, quer dizer, que manter a economia sob lock-down pode causar dano maior que deixar morrer milhares de pessoas, vítimas da Covid-19.

Mas o paradoxo aqui é que as elites não estão absolutamente ‘empreendendo’. Não se trata da Guerra ao Terror. Não há a quem culpar (embora os EUA muito apreciariam pôr a Covid-19 na conta da China): ‘Não começamos essa pandemia’. ‘A Morte’ desceu sobre nós – evento vindo ‘do além’. Mesmo assim, o combate a esse ‘evento’ já foi declarado ‘guerra total’. Nada há de tangível, nenhum inimigo real ‘a combater’ – apenas um vírus, que os virologistas nos dizem que não é ‘vivo’, apenas representa algo que habita as fronteiras entre vida e não vida. Não é possível matar, em sentido literal, esse tipo de entidade.

E como guerrear essa guerra? Há plano de combate? Não, não há. Não pode haver (além de mitigar o alcance da morte). O Dr. John Ioannidis, Professor de Medicina e Epidemiologista na Universidade Stanford, conta-nos que o modelo do qual dependem os planos para a campanha ‘militar’ do governo, é imprestável:

“Os dados coletados até aqui, sobre número de pessoas infectadas e como a epidemia estaria evoluindo são absolutamente imprestáveis, sem qualquer confiabilidade. Dada a testagem até aqui muito limitada, muitas mortes e provavelmente a vasta maioria de infecções devidas ao vírus SARS-CoV-2 (COVID-19) não estão sendo computadas. Não sabemos se estamos deixando de contar infecções a serem multiplicadas por três, ou por 300. Três meses depois de o surto ter começado, muitos países, dentre os quais os EUA, ainda não têm os meios necessários para testar grande número de pessoas, e nenhum país tem dados confiáveis sobre a prevalência do vírus numa amostra válida da população geral (…)”.

As taxas de mortalidade, também estão aí, em todas as conversas. Enquanto pesquisadores debatem a provável causa dos 10% de mortes na Itália, só uma coisa é não muda: as taxas de mortalidade estão subindo. Virtualmente, todas as nações do mundo que têm alto número de casos contabilizados assistem ao aumento continuado das taxas de mortalidade. Na Espanha, a taxa de mortalidade está agora em 8,7%. Há dez dias, estava em 5,4%. Na Holanda, a mortalidade está em 8,3%. Há dez dias estava em 3,8%. No Reino Unido, a taxa de mortalidade está agora em 7,1%. Há dez dias, estava em 4,6%. Na França, a taxa de mortalidade está em 6,75. Há dez dias, estava em 3,9%.

A morte, em outras palavras, parece estar no comando nessa ‘guerra’.

Pois ainda assim, por trás de tudo que o governo teme quanto ao status quo econômico, jaz outro ‘demônio’: a histeria e a revolta em massa, dos que, agora desempregados, não têm dinheiro para comprar comida. Mais uma vez – a psicologia de uma multidão em levante – seduz mortalmente a psique coletiva. A psique coletiva não pode ser morta por soldados. E essa psique já começa a se impor no sul da Itália, onde as pessoas, que têm fome e não têm dinheiro, estão invadindo supermercados e saqueando toda a comida que encontram. (Por enquanto, querem comida, mas logo começarão a derrubar muros, à procura de dinheiro).

A desordem social e os tumultos provavelmente abalarão ainda mais os governos, que os balões murchos das respectivas economias. Mas não é disso que trata o paradigma de ‘Guerra à Morte’? Polícia nas ruas; o exército patrulhando; lei marcial; e a criminalização de qualquer movimento não autorizado. Cresce por toda parte a prontidão contra revoltas populares: contra o medo de que os subúrbios de Paris – habitados principalmente por imigrantes  – ou o Mezzogiorno italiano, explodam.

A Cruz Vermelha e o Crescente Vermelho alertaram recentemente que uma “bomba social pode explodir a qualquer momento” sobre cidades ocidentais. Isso, porque a evolução da pandemia, que esmagou a economia dos EUA empurrando-a para uma depressão, pode resultar em agitação social nas grandes metrópoles, especificamente em áreas de baixa renda.

Um desespero dos governos – alimentado pelos riscos de desintegração social e econômica – levará governos, provavelmente, a apostar em levantar já as leis de isolamento social, ou em tentar uma ‘liberação’ parcial. Mas também aqui se aplica o mesmo dilema: os governos farão o que fizerem, também nesse campo, ‘às cegas’, ou confiados numa modelagem viciada.

Porque não passa de aposta. O Signier Laboratory oferece-nos essa ilustração da possível matemática por trás do ‘afastamento entre as pessoas’:

Esse, como a maioria dos atuais modelos, é puro palpite em termos dos pressupostos (como uma taxa de infecção de 2,5). Mas a mensagem é clara. A opção por relaxamento parcial do confinamento ou relaxamento localizado só facilitará a eclosão de uma Segunda Fase. A China já está passando por isso – e teve de impor confinamento absoluto na província Jin, depois de abrir Hubei.

Onde está o equilíbrio a favor de lideranças desesperadas? Quem sabe? Uma fase II pode acontecer, seja como for; o vírus pode ter alguma mutação (como aconteceu em agosto de 1918, com a ‘gripe espanhola’) e tornar-se mais (ou menos) letal. O que torna Covid-19 difícil de administrar ou prever é que causa infecção desde o dia zero, mas o portador pode nem perceber que foi infectado (ou que esteja doente) até 5-8 dias depois. Mas já nesse período, o portador não sintomático será 100% contagioso – e estará levando a pandemia a uma segunda fase. (Não se conhece testagem universal para anticorpos.)

Os governos provavelmente aliviarão as leis sobre distanciamento entre pessoas, para aliviar as pressões sociais e econômicas. E ficaram de dedos cruzados, pedindo a Deus que o Covid-19 não volte, em nova fase, para ‘repreendê-los’ com tapinhas na bochecha – e expor o nonsense de todas essas medidas. É uma aposta – e a credibilidade desses governos estará no alvo – seja qual for o lado que escolham. Estão em veleiro sem vento entre Cila e Caríbdis: sem boas opções.

Assim sendo, a que isso nos leva? A uma esquizofrenia (não inesperada). Estão de tal modo rendidos ao status quo (como a uma “inalcançável Musa”, no sentido de J B Yeats), que a única ‘solução’ ao alcance deles é alguma rápida reposição da ‘normalidade’. Retortas alquímicas mentais seladas. Como, por exemplo:

“Um grupo bem conhecido de administradores de ativos do Reino Unido está prevendo nessa manhã [5/4] recuperação em “V”, do terceiro trimestre em diante (…) Para eles, pacotes infinitos de Alívio Quantitativo “resolveram” a bolha da dívida; o mercado de ações está agora com preços realistas para uma recuperação global; os governos mitigaram o dano; e veremos salto massivo em sentimento, atividade e demanda reprimida, quando terminar o confinamento, e as economias reabrirem – com um salto de irrestrita alegria”.

Essa linha de pensamento afirma que o que se vê acontecendo nos EUA e na Europa não é verdadeira recessão. Os fundamentos econômicos estão magníficos. Só fechamos a economia por causa do Covid-19. Assim sendo, se religarmos tudo outra vez, será ótimo.

Sabe-se que a ação de doses pesadas de açúcar branco sobre o cérebro humano é muito semelhante à ação de drogas que criam dependência, porque liberam dopamina, uma espécie de ‘recompensa’ química, pela qual o cérebro passa a ansiar. Desde 2008/9, portanto, temos tido o que Dan Amoss chama de a ‘economia-efeito-‘barato’-de-açúcar’ [ing. ‘sugar-rush economy].

Assim sendo, para manter o status quo, a prescrição é inevitavelmente mais e mais açúcar, mais gastar e mais imprimir dinheiro. E se o efeito começa a se dissipar, a reação é ‘dobrar a dose’. Tudo isso é pensamento desejante. É parte da ‘viagem’, do ‘barato’, parte da ilusão. A economia não ia bem. Desde 2008, o Fed alimentou uma ‘economia-efeito-‘barato’-de açúcar’. É uma bolha. Esse é o problema. E a bolha pode ter recebido espetada fatal.

O que acontece, quando afinal formos liberados do confinamento: saímos à rua – ainda piscando à luz do dia –, mas será mundo muito diferente. Veremos que aquele ‘empreendimento’ humano – nossos governos – foram absolutamente incapazes de arrancar um fiapo de vitória, que fosse, dessa guerra. Recriminações se multiplicarão. Se a mortandade tiver cedido – terá sido porque a natureza e a biologia assim se encaminharam. Claro que há o ‘empreendimento’ humano – mas há outras forças em ação nesse nosso Cosmos, que podem fazer a húbris de Prometeu parecer patética.

Foi um simples insight desse tipo que tanto abalou Sevilha, na alegoria de Dostoevsky. A estranha ‘intrusão’ avançou sobre as memórias conscientes semiesquecidas da cidade deles, do que é ser plenamente humano, e fizeram lembrar um modo diferente de potencial humano. O medo de morrer, claro, frequentemente (também) opera o mesmo truque.

Depois vem mundo mais hesitante, mais cauteloso. Sob choque econômico, e devolvidos às nossas raízes, seremos para o futuro, suspeito eu, muito mais cautelosos: cartões de crédito serão cortados pela metade; tentaremos poupar mais e nos adaptaremos ‘para baixo’. Sairemos e nos poremos a gastar sem limite? Um salto no ‘sentimento reprimido’? Nada disso. A experiência foi um castigo para nós todos. Quem agora vê pela frente um mundo de certezas? Todos os aspectos da vida mudarão. Alguns dos menores negócios abrirão, mas muitos deles permanecerão fechados. Muitos de nós continuaremos a trabalhar de casa. Muitos de nós não teremos qualquer trabalho – e muitos talvez nunca mais trabalhem.

Mas o que parece estar assolando a consciência pública é coisa de outro tipo: ninguém viu qualquer empatia durante a pandemia – nada. (Lembrem os comentários sobre o quanto a calamidade Covid-19 em Hubei seria excelente para os EUA). Solidariedade? Nenhuma (pelo menos, com certeza, claro, que partisse da União Europeia); Liderança – nenhuma, apesar da abundante corrupção semilegal. Trump tomou conta do Tesouro dos EUA, o qual, por sua vez, controla hoje completamente as prensas de imprimir dólares do Fed. Trump é o Rei Dólar. Pode imprimir o que bem entenda. Dar a quem bem entenda (mediante os secretos Veículos para Objetivos Especiais do Tesouro [ing. the Treasury’s secretive Special Purpose Vehicles (SPVs)], terceirizado para o Fundo Blackrock. O Orçamento dos EUA foi ‘fritado’.

 

Como observou um banqueiro: “Você gostaria de ser candidato Democrata concorrendo contra [um Trump] injetando 2 trilhões de dólares em infraestrutura numa economia fraca? Boa sorte no seu projeto!” Olhos bem abertos. Onde foi parar nossa bússola moral – sem nem falar de nossa comum humanidade?

Caiu a máscara: será que estamos no ponto de inflexão da ordem global, quando o sistema ocidental hiperfinanceirizado já não consegue se autorreformar, recusa-se a se autorreformar e tampouco é capaz, como antes foi, de se autossustentar? Será que o sistema – tão empenhadamente dedicado a cuidar dele mesmo – percebe, pelo menos, que o mundo já não acredita nele, em nada e para nada?

[1] O longo trecho onde se inserem os parágrafos citados está reproduzido na Internet, em tradução não creditada que, valha o que valer, pode ser lida aqui [NTs].

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga


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